29 fevereiro 2004






O GOLPE DE ASA

A propósito de um comentário de café, de um amigo meu, sobre a previsibilidade de certo tipo de escritos ou crónicas, a começar pelas minhas. Dizia (e bem…) ele: "eu leio as crónicas mas, a partir de certa altura, já sei como văo acabar, ou o que văo dizer…".E realmente, vendo bem, quando escrevemos, existe um esquema conceptual, uma ideia base, um objectivo ou finalidade, e vai daí, apontamos baterias para qualquer sítio que nos sirva para descarregar a nossa fúria (digo eu!) contra uma situaçăo, uma imagem, uma coisa que achamos estar mal. Ou entăo, pelo contrário, a nossa aprovaçăo por aquilo que julgamos estar bem. Correcto ou, simplesmente conforme o nosso ponto de vista. Ou seja, uma visăo estrita de "pró" e/ou "contra", ŕs tantas demasiado redutora. Será isto? Se assim for, significa que năo somos capazes de "um golpe de asa", que nos transporte para um estádio de sentimento expresso pela palavra e, para que queremos (eventualmente) transportar quem nos lę.
No famoso "Quase", Mário Sá Carneiro diz-nos, com muita propriedade:

"Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém..
."

Entăo, o que nos falta para na realidade conseguirmos o golpe de asa, surpreendendo assim quem (com muito gosto) nos lę, afastando a previsibilidade? Enfim, penso que resposta năo existe ou, pelo menos năo sou eu que a tenho. Por isso mesmo apreciamos, nas nossas leituras, os escritores, os jornalistas, os que usam a palavra como uma forma de arte, como arquitectos de um edifício que gostamos de visitar e de nos surpreender.

É de facto uma aprendizagem que fazemos, e como qualquer outra aprendizagem năo é só uma simples modificaçăo de comportamentos, mas sim um estado de aceitaçăo do conhecimento, das técnicas, de estar em consonância com o mundo que nos cerca e que, com todas as transformaçőes rápidas e sistemáticas, nos implica uma adesăo de aderir a ela (aprendizagem) ao longo da vida.
Enfim, vamos escrevendo como sabemos e podemos (para já!) e vamos adquirindo alguma responsabilidade para quem nos lę e a que devemos corresponder com a tal capacidade de surpreender, que afinal constitui a verdadeira arma da escrita, como muito bem dizia Alexandre O' Nei, na "Criaçăo"l:

"Da folha de papel, amarfanhada,
A mosca sobe aos montes.
Desce aos vales,
Evola-se.

A măo, armada,
Recomeça a planar
Sobre outra folha lisa,
De papel
."

19 fevereiro 2004







Resultados do Jogos Amigáveis desta semana





Tribunal Aveiro: 0 Mulheres acusadas: 7
Uma vitória rotunda da liberdade, da justiça, dos direitos individuais, do bom senso, contra a intolerância, a injustiça, a demagogia e o obscurantismo. Num tempo de incertezas em todos os campos, é de salientar a frontalidade do árbitro (juiz) que afirmou năo se sentir nada incomodado com as manifestaçőes das claques, durante o decurso do jogo. Calcula-se já como devem ter ficado os defensores da criminalizaçăo, a começar pelo treinador da equipa da casa (um tal de delegado do MP) que, acusando um mau perder pior que o do Mourinho, acabou protestando o jogo. Com 0-0 ao intervalo, este jogo foi dos mais concorridos da época e deve ter arrumado em definitivo a outra equipa para o caixote do lixo deste estranho campeonato.

Celeste Cardona: 2 Reforma da Justiça: 0
Este o resultado das últimas contrataçőes desta destacada treinadora da conhecida equipa "Direita na Justiça". Tratam-se de 2 jovens de 29 e 30 anos, bastante experientes, contratados para o Gabinete de Auditoria e Modernizaçăo, que tinha sido considerado perfeitamente inútil pela própria Celeste, tendo pensado até em extingui-lo. Este Gabinete, onde já trabalharam 16 funcionários conta apenas com o motorista, já que todos ...os outros foram tranferidos. Contrataçőes de muito "peso", já que um deles vai receber 5.541,00 euros e o outro vai receber 5.380,00, săo consideradas fundamentais para a chamada Reforma da Justiça, mas que (azar?) continua a ser a principal adversária da Celeste. Uma explicaçăo possível para este resultado, que nunca tem sofrido alteraçăo desde o início da partida reside (talvez?) na circunstância de a tal Celeste só contratar reforços que jogam na extrema-direita, lugar muito da preferęncia da dita sujeita.

http://www.tsf.pt/online/portugal/interior.asp?id_artigo=TSF141439

Morais Sarmento: 0 Saudosistas do Passado: 11
Entăo năo é que este homem, com profunda provas dadas ŕ Democracia Portuguesa, a começar por um esperançoso estágio no Casal Ventoso, continuando nos ataques cerrados com 4 ou 5 pontas de lança ao mesmo tempo, sem substituiçőes, ŕ equipa da RTP, onde chegou a oferecer viagens aos estúpidos ouvintes do "Acontece", que năo pagou (pelo menos a mim, năo me pagou!) vem agora atacar (sempre a atacar) o 11 de Março de 1975? Ora que me conste, nesse ano o homem năo tinha ainda equipa formada, portanto năo podia jogar, donde năo devia estar a mandar palpites, pois me parece que năo conhecia bem, nem o terreno de jogo, nem a constituiçăo das equipas; eu acho até que ele nem conhecia sequer o campeonato…Daí a vitória da equipa adversária a qual, diga-se de passagem, năo lhe adiantou de muito, dado que uns meses depois (mais propriamente 8), acabaria por perder o desafio, numa 2Ş volta muito polémica, que ainda hoje se comenta em determinados meios, dado que parece que o jogo năo teve árbitro nomeado…

APIFARMA: 4 Hospitais: 0
Este é um dos tais jogos que năo tem história, dada a disparidade das equipas em disputa. Que os hospitais năo pagam, năo é novidade nenhuma, que o Estado é o principal responsável por este resultado também parece pacifico. Agora o que é fantástico é ser a equipa do Amadora-Sintra a principal responsável por este resultado; é que é giro de todo ser esta equipa a que mais deve e leva mais tempo a pagar, mais ou menos na casa dos seiscentos e tal dias! Entăo năo era esta equipa considerada exemplar, em termos de gestăo privada dos hospitais? Apetece dizer, com o Jorge Palma: "…deixa-me rir…"

Realmente, com jogos destes, prognósticos só no fim do jogo (onde é que eu já ouvi isto?)


06 fevereiro 2004






À PESCA ? HÁ PESCA ?


A cena do navio espanhol a pescar nas águas territoriais portuguesas, ao largo dos Açores e a resposta das autoridades portuguesas é mais um episódio que mostra o total desnorte a mais completa incompetências do "nosso" Governo.
Vejamos os factos; um navio é descoberto nas nossas 200 milhas e o Governo dos Açores, pede explicações à Direcção-Geral sobre a abrangência de um acordo feito entre os Governos de Espanha e de Portugal.
1ª questão: então o Governo dos Açores não conhece os acordos efectuados pelo Governo Central? De quem é a responsabilidade?
2ª questão: o Governo do País também (pelos vistos) já não sabe bem o que assinou! Admirados? Eu nem por isso; então os nossos Governos (de facto não é só este!) não assinam tudo o que os espanhóis pretendem? Não tem sido sempre assim, desde a destruição praticamente completa da frota dos tempos do cavaquismo (lembram-se?)
É realmente patético que o Secretário de Estado Frazão Gomes venha pedir um parecer à Comissão Europeia sobre a questão da pesca nos Açores para confirmar se Madrid cometeu ou não uma ilegalidade. Não dá para acreditar em tanta estupidez!
As notícias na comunicação social de ontem não deixam margem para dúvidas quanto à mais descarada ilegalidade da decisão espanhola de passar licenças para a faina nas águas açorianas; sob o título "Pesca ilegal nos Açores e Madeira", o Diário de Notícias dava conta na sua edição

Pelo contrário, as autoridades portuguesas ainda têm dúvidas e vão pedir o tal parecer; perante tal enormidade, o que apetece perguntar é o que estes indivíduos andam realmente a fazer pelo País. Andam à pesca? E já agora, apetece perguntar ainda: mas, …ainda há pesca?
Querem um conselho polido e educado? Ouçam o Otis Redding, vão para a doca, à espera do fim da tarde, ver os navios partir e chegar; e já agora contem se há algum que seja português…

"Sittin' in the morning sun
I'll be sittin' when the evening come
Watchin' the ships roll in
Then I watch 'em roll away again
"

Isto claro para não vos mandar ao sítio que realmente merecem!

04 fevereiro 2004









COISAS DA GRAMÁTICA


Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador.

Um substantivo masculino, com um aspecto plural, com alguns anos bem vivido pelas preposições da vida. E o artigo era bem definido, feminino, singular: era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal. Era ingénua, silábica, um pouco átona, ate ao contrário dele: um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanáticos por leituras e filmes ortográficos.

O substantivo gostou dessa situação: os dois sozinhos, num lugar sem ninguém ver e ouvir. E sem perder essa oportunidade, começou a insinuar-se, a perguntar, a conversar. O artigo feminino deixou as reticências de lado, e permitiu esse pequeno índice.

De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro: óptimo, pensou o substantivo, mais um bom motivo para provocar alguns sinónimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeça a movimentar-se: só que em vez de descer, sobe e pára justamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela no seu aposto. Ligou o fonema, e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, bem suave e gostosa. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela.

Ficaram conversando, sentados num vocativo, quando ele começou outra vez a se insinuar. Ela foi deixando, ele foi usando seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo, todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo directo. Começaram a aproximar-se, ela tremendo de vocabulário, e ele sentindo o seu ditongo crescente: abraçaram-se, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples passaria entre os dois.

Estavam nessa enclise quando ela confessou que ainda era virgula: ele não perdeu o ritmo e sugeriu um longo ditongo oral, e quem sabe, talvez, uma ou outra soletrada em seu apostrofo. E claro que ela se deixou levar por essas palavras, estava totalmente oxítonas as vontades dele, e foram para o comum de dois géneros. Ela totalmente voz passiva, ele voz activa.

Entre beijos, carícias, parónimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais: ficaram uns minutos nessa próclise, e ele, com todo o seu predicativo do objecto, ia tomando conta dela inteira. Estavam na posição de primeira e segunda pessoas do singular, ela era um perfeito agente da passiva, ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular.

Nisto a porta abriu-se repentinamente. Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo, e entrou dando conjunções e adjectivos nos dois, que se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas. Mas ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tónica, ou melhor, subtónica, o verbo auxiliar diminuiu os seus advérbios e declarou o seu particípio na história. Os dois olharam-se, e viram que isso era melhor do que uma metáfora por todo o edifício. O verbo auxiliar se entusiasmou, e mostrou o seu adjunto adnominal.
Que loucura, aquilo não era nem comparativo: era um superlativo absoluto! Aproximou-se dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado para seus objectos. Foi chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo, propondo claramente uma mesoclise-a-trois. Só que as condições eram estas: enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria ao gerúndio do substantivo, e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.

O substantivo, vendo que poderia se transformar num artigo indefinido depois dessa, pensando em seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história: agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, atirou-o pela janela, e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel a língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.


Autor desconhecido, SecXXI

01 fevereiro 2004








A CAVERNA DO JOSÉ


José conta-nos uma história. Uma história simples, uma história de todos os dias. Uma história dos dias de hoje, dos dias que passam, devagar para uns, depressa para outros, mas que vão passando, sem que na maior parte das vezes nos demos conta que somos constantemente envolvidos por um ritmo que parece não ser o nosso, um ritmo que somos obrigados a seguir, sem muitas vezes nos questionarmos porquê.

José conta-nos a história de Cipriano, um oleiro que vive com a filha Marta e que fabrica peças de cerâmica para o Centro, onde tudo se compra e tudo se vende. O Centro é a cidade, ou melhor como diz Cipriano, "por vezes o Centro parece maior que a cidade". De um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, os responsáveis informam Cipriano que já não querem mais peças da olaria, porque os clientes preferem comprar peças em plástico, que fica mais barato. Em face da previsível situação de deixar de ter a quem vender, Marta tem a ideia brilhante de diversificar a produção da olaria e, em vez das peças habituais, os pratos, as travessas, produzir bonecos decorativos; então vai Cipriano apresentar ao Centro a nova proposta que é aceite. A partir daí, dá-se uma verdadeira revolução na olaria, com novos produtos, que originam novos processos de fabrico, descoberta de novas técnicas, nova vida empresarial. Paralelamente a tudo isto, a história orienta-nos para uma espécie de determinismo fatal: é que Marçal, marido de Marta, é guarda no Centro e, mais cedo ou mais tarde terá de ir viver para um apartamento lá mesmo situado e, para Cipriano não ficar sozinho, irá com eles, deixando a olaria.

Vale mesmo a pena determo-nos na leitura da história para nos apercebermos do crescente processo de desumanização que vamos vivendo e que o autor quer naturalmente alertar. Para nos darmos conta daquilo que está bem à vista, com as nossas cidades cheias das novas catedrais do consumo. Esses centros, onde tudo é igual, até os cheiros (a hambúrguer e pipocas), as mesmas marcas, as mesmas lojas, as mesmas salas de cinema, …As pessoas vão entrando nas cavernas de todos os dias, uma espécie de lugar onde se vão sentando, olhando em frente, para uma parede por onde passam sombras, julgando que essas sombras são a realidade (Platão, Alegoria da Caverna)

Cada vez é maior o fosso entre o conhecimento e a ignorância e parece à primeira vista que a grande maioria das pessoas está dominada e ofuscada por meia dúzia de estereotipos fúteis, incapaz do exercício de simplesmente pensar, "aceitando" ser formatada por padrões de vulgaridade, de baixo gosto e de ausência de conceitos. Essa tentativa de formatação é visível em todos os sectores da sociedade, e necessária para que a elite do poder se vá perpetuando, sem grandes choques. É contra esta lógica perversa que José escreve, lançando questões e fazendo avisos.
No mundo dos computadores, quando queremos formatar uma vulgaríssima disquete, o sistema avisa, para o caso de estarmos a formatar algo onde temos gravado dados importantes, através de uma mensagem: "Aviso: A formatação apagará TODOS os dados contidos neste disco. Para formatar o disco, clique em OK. Para sair, clique em CANCELAR."

A questão é que para a "nossa formatação" não haverá um aviso semelhante; ou melhor, haver há; os avisos são os livros como os de José, que nos chamam a atenção, que nos despertam, nos ligam à vida, às pessoas, aos ideais, enfim ao encontro de um sentido para a existência. Face a isto, dizemos simplesmente "OK", ou rejeitamos em definitivo e dizemos "CANCELAR"?

Ao interrogarmos a nossa própria entrada para uma qualquer caverna, saibamos parar e perguntar como faz José: "... o que me preocupa neste momento é saber: que diabo de gente somos nós?"


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