15 maio 2016

TOURADA



Afirma com energia o disparate que quiseres e acabarás por encontrar quem acredite em ti
Virgílio Ferreira








Eu sabia. 
Haveria de estar em frente da TV precisamente um quarto para o meio-dia. Daria para gravar, mas ao vivo era outra coisa. E sabia que, do outro lado do mundo, haveria uns não sei quantos milhões a ver a coisa que dava por cá, um prodígio de valor porque, como um dos intérpretes viria a dizer, o nosso produto é bom. Já há uns dias atrás, um idiota mascarado de economista trocaria uns quantos papéis com números manipulados, para mostrar ao povo que o apocalipse se aproximava perigosamente e era preciso fazer qualquer coisa para subtrair o poder a quem o tinha usurpado, na gloriosa pátria bem-amada. Onde o produto, não nos esqueçamos, é bom, dando portanto para exportar, enriquecendo assim a suposta e inerente taxa que faz a riqueza do país aumentar. Não interesse para quem, isso é outra história.
Havia de tudo na messe, era só apostar e aparecia sempre um tipo de calções com a bandeja das oferendas que um catroga qualquer (dava por esse nome) coleccionava aos milhões e passava para o outro lado do mundo, numa orquestrada sinfonia espaventosa. Embora em tempos idos, o tal tipo pregasse a pobreza como onírica ventura. Não havia pois qualquer dúvida, era o acontecimento do século, no rescaldo do 13 de Maio, de boa memória para a populaça, um bom negócio afinal para juntar umas coroas, em velas, passeatas e afins. A pátria vendida a preço de saldo, mas com aquela garra lusitana que orgulhava sempre o pequenote rapazola que andava sempre (havia-lhe ganho o gosto durante 4 anos) com um emblema na lapela e chutava sempre para canto, quando se falava em inaugurações.
O país rendido aos pés da estupidez, marchava direitinho para a terra santa, enquanto uns quantos empunhavam estranhas bandeiras, umas com uma seta para cima e outras com um alvo e duas setas apontadas para ele, em que só acertavam de cada vez que falhavam. Que me lembre, havia uma senhora de crista, que gritava bem alto o peixe que vendia, bem fedorento diga-se entretanto, de podre que devia estar.
Era para ser festa uma dia depois, quando a maralha descesse a rua e irrompesse na praça, onde um marquês ostenta uma bandeia encarnada. Mas tão não era novidade, de há 3 anos a esta parte, nada de anormal, muito embora a saudável estranheza de muitas bandeiras vermelhas na rua, assuste sempre aqueles (e aquelas) que preferem a cova da iria à cova da moura, vá lá saber-se porquê, mistérios insondáveis quiçá.
Havia ainda uma estória mal contada e que envolvia o tipo que andava a tirar o tapete aos colégios, uma trama imensa, um golpe insidioso contra a “liberdade de escolha”, que para os detractores não era mais que a obrigação que a maioria terá em lhes amparar e confortar o luxo a que divinamente têm direito.
No meio de tanta confusão ficamos sem saber quem ganhou o jogo, embora a esperança fique de pé, para mais logo a invasão ser uma vaga de fundo. Sabemos que, hoje como antes, “toureamos ombro a ombro as feras[1]. E que na tourada da vida acabaremos sempre por ter que “pegar o mundo/pelos cornos da desgraça/e fazermos da tristeza/graça[2].
Quanto ao resto, que nos valha são marcelo, senhor de Belém e de todos os afectos. Amém.



[1] Extracto do poema “Tourada”, José Carlos Ary dos Santos, Lisboa 1973
[2] Idem, ibidem

This page is powered by Blogger. Isn't yours?