03 agosto 2017

(Afinal) Existe Pecado Ao Sul do Equador


Quando escreveu, o poema “Não Existe Pecado Ao Sul do Equador”, Chico Buarque de Holanda quis transportar para a época (final dos anos 70, 1978) um aforisma do pensador holandês Gaspar Barlaeus (1584-1648) que, entre outras obras, escreveu um relato do Império colonial holandês no Brasil. Precisamente esse, que dá título ao poema e que se apoia na tese “Como se a linha que divide os hemisférios separasse também a virtude do vício”. Quando, em meados do século XX, começaram a brotar na América do Sul, movimentos sociais de oposição ao capitalismo e ao imperialismo, no sentido da libertação dos povos e de uma justiça social diversa, desenhou-se no horizonte, um “pecado”. Em quase toda a América Latina o Exército era, em meados do século passado, a única força social organizada, estando o Estado à disposição dessa força, cujo objectivo seria o de “...proteger a sociedade contra a desordem”. A tese resultante do “corolário Roosevelt”, que assimilava a América Latina como “quintal dos EUA”, conduziria ao relativo sucesso da primeira revolução proletária no continente (Bolívia, 1952), na vitória da primeira revolução socialista (Cuba, 1959), na aniquilação Guarda Nacional de Somoza (Nicarágua, 1979), [Coggiola, 2014].

Argumentos novos?

Todos os que ora se apresentam a zurzir sobre Maduro, fizeram exacatamente o mesmo aquando da ascensão de Hugo Chávez ao poder, em 1999. Os mesmos argumentos, a mesma “velocidade de raciocínio”, a mesma vontade de ser contra a diferença. Mas então, contra quê, afinal? Começado obviamente pelo principio, deve dizer-se que ele não é mais que o preconceito burguês, anquilosado e mesquinho do sentido estrito do poder. Segundo este conceito, o poder do Estado deve ser baseado no equilíbrio entre as forças sociais e reprodutivas, alicerçado numa pretensa “democracia” que legitima a dominação do capital sobre o trabalho, ou mais recentemente, da predominância da finança, como motor único de desenvolvimento. Este poder deve ser, nessa perspectiva, exercido por uma elite consensual, que deverá estar em tudo alinhada com as “sagradas” regras de mercado, da livre concorrência. Tal implica, na “moderna” concepção neoliberal, uma série de condições objectivas, como sejam a fraca (ou nula) intervenção do governo no mercado de trabalho, a política de privatização de empresas estatais, a livre circulação de capitais internacionais e a adopção de medidas contra o protecionismo econômico, a abertura da economia para a entrada de multinacionais e a diminuição dos impostos e tributos.
Apelidado sempre de “palhaço” pela burguesia dominante, ou de “populista”, pelos donos da comunicação social e por muitos politólogos ocidentais, Chavez foi, acima de tudo, um estratega político brilhante, tendo conseguido e renovado de forma sistemática, alianças improváveis e aparentemente imprevisíveis. Salienta-se por exemplo, a proximidade entre Diosdado Cabello (Presidente da Assembleia Nacional até Dezembro 2015) e muitos colectivos da esquerda radical [Migus e Rebotier, 2014]. Habilidade política que haveria de justificar de certa forma o sucesso do chavismo e a defesa cerrada das conquistas populares, desde o início da década de 2000. Estávamos então em plena ascensão do “socialismo do século XXI”, que levaria a uma drástica redução da pobreza e das desigualdades.

Esquecendo o que se fez, desde 1999?

Na realidade, em 18 anos do processo bolivariano, “...a Venezuela aprovou a mais avançada Lei Fundamental da sua história, reduziu substancialmente os índices de pobreza, elevou os rendimentos do trabalho, diminuiu de forma marcante o desemprego e a precariedade laboral, alargou a milhões de idosos o direito a pensões de reforma, garantiu a ampliação e universalização de sistemas públicos de saúde e educação, liquidou o analfabetismo. Reduziu a desigualdade social a um dos níveis mais baixos numa região que ostenta os índices mais elevados do planeta. O Estado investiu na alimentação, habitação e cultura como nunca antes acontecera. Abriram-se novos espaços de participação popular e democracia participativa.”. Difícil de desmentir, ainda “...o registo de décadas de ditaduras e poder serventuário das oligarquias, já para não referir os séculos de domínio colonial, com todo o historial e cadastro de atrocidades e repressão, de detenções arbitrárias, torturas, desaparecimento e assassinatos políticos de dirigentes e activistas populares, de que a «democracia» venezuelana foi quiçá precursora na América do Sul, antes dos anos negros do Plano Condor, orquestrado por Henry Kissinger.”

O papel da “comunicação social” vendida e manipulada

A informação sobre a Venezuela raramente é fidedigna, é sempre do mesmo teor e reflecte sempre os pontos de vista da oposição e dos seus “parceiros” nacionais e internacionais. A exploração contínua de notícias sobre a inflação, ou as previsões que são feitas para o respectivo valor, variam de dia para dia, mas têm em comum um traço: a passagem para a opinião pública da catástrofe iminente. Alguns exemplos datados, pela disparidade ou pela falta de rigor, demonstram de forma clara o papel da informação que existe ao dispor, quer em formato escrito, quer nos media:
Jornal “El País”, 13 Abril 2016, sob o título “Venezuela terá inflação de 2.200% em 2017, prevê FMI”: “A economia venezuelana entrou numa espiral inflacionária que não parece mais ter fim. O Fundo Monetário Internacional (FMI) já havia previsto em janeiro um recorde de inflação neste ano no país, com a estimativa de 720% – ou seja, que os preços seriam multiplicados por mais de oito. Nesta terça-feira, porém, um novo relatório divulgado pelo Fundo em Washington foi além, ao prever uma taxa de até 2.200% no final de 2017. Para os anos seguintes, o problema se agrava até chegar a 4.600% de inflação anual em 2021.”
Jornal “Diário Económico”, 24 Janeiro 2017, com o título “Inflação na Venezuela vai em 800%, mas ainda não parou”, e sempre o FMI que prevê “...um agravamento das condições económicas do país”, e que diz que “...a contração económica será acompanhada de um cenário de hiperinflação, prevendo valores superiores a 1600%,” e finalmente, na sua previsão de outubro de 2016, “colocava a fasquia da inflação para 2017 nos 1660,05%”, 
Jornal “Folha de S. Paulo”, 10 Abril 2017, sob o título “Inflação pulveriza dinheiro na Venezuela” e se “sentencia” desta forma: “O bolívar é a cara mais visível da inflação na Venezuela. A alta de preços de 25% ao ano, sob Hugo Chávez, se acentuou com Nicolas Maduro e hoje se aproxima de 500%.”
Sabendo como funcionam as previsões do FMI, podemos dormir descansados. Não é por aí que virá qualquer mal ao mundo. O mal pior é essa perversa instituição ainda existir. Desafia-se então a curiosidade de encontrar na comunicação social um estudo sério, rigoroso e credível sobre a evolução da situação económica na Venezuela, desde a instauração do chavismo. Assinalamos aqui, como exemplo raro, o artigo de Renaud Lambert, na edição portuguesa do jornal “Le Monde Diplomatique” e onde se procuram analisar, quer a perspectiva económica, quer a evolução da situação politica, após a morte de Hugo Chávez em 2013, e se apresentam números e factos que são praticamente impossíveis de “encontrar” noutros media.
Por outro lado, existe ocultamento de notícias. Como por exemplo, o caso que ocorreu, no passado mês de Junho, no Estado de Anzoátegui, onde grupos da "oposição" incendiaram armazéns de alimentos e cadeias de distribuição, onde foram destruídas 50 toneladas de alimentos. O armazém em questão servia 278 escolas, 31 centros de diagnóstico médico, 3 prisões, 1 lar de terceira idade entre outras instituições.
A fabricação de notícias e a sua manipulação por um lado e as tentativas permanentes de desestabilização por outro lado, ajudaram a montar um clima de suspeição sobre o regime. 

Os “verdadeiros” defensores da “Democracia”

São vários, embora sejam invariavelmente os mesmos de sempre.
A União Europeia, que protagonizou a mais terrível crise de refugiados desde a segunda guerra mundial, que cauciona e apoia regimes fascistas no seu seio, que tenta impor a austeridade permanente a milhões de cidadãos, que criou uma espécie de regime imperial na Alemanha, vem agora pronunciar-se sobre a “validade” das eleições na Venezuela. Chega a ser patético, no mínimo de uma hipocrisia mal disfarçada, a ameaça de sansões. Sansões e embargos, penalizações sempre na senda da opressão dos povos e da minagem do aparelho económico, para desestabilizar o poder constituído.   A União Europeia, arroga-se no direito de não legitimar a Assembleia Constituinte resultante das eleições de 31 de Julho. Com que direito e com que moral?
O chefe corrupto do Governo de Espanha, um dos primeiros a pôr-se em bicos de pés contra a situação na Venezuela. Será que ainda sonha com o passado?
O fantoche americano, sobre o qual já se disse tudo, mas que continua no seu posto. Conhece-se bem o “trabalho” das diversas administrações americanas, desde o final da segunda guerra, para minar e destruir os regimes progressistas da América do Sul, os boicotes, assassínios e violações perpetrados, nomeadamente em Cuba, Chile, Nicarágua, Bolívia ou Equador, utilizando a CIA e grupos armandos clandestinos, quer na acção directa naqueles países, quer na destruição do aparelho económico, através nomeadamente da acção cirúrgica e certeira do FMI.

Instalação do medo e do “pecado”

Acresce a tudo isto, a inabilidade política de Maduro, incapaz de se mover num cenário controverso e ainda de dar resposta às sucessivas manobras de sabotagem do capital internacional. Tal e qual como no Chile, entre 1972 e 1973, um ano antes do assassinato do regime democraticamente eleito de Salvador Allende. 
Maduro não é Chávez, muito embora a questão fundamental não seja, embora ajude, de características pessoais e habilidades de negociação. O regime foi sabotado por dentro e por fora. A dita oposição, onde se encontram todos aqueles que, gritando por “liberdade” e “democracia”, mais não pretendem que seja “pôr o povo de joelhos”. A sua agenda, mais ou menos escondida, contém a reversão completa das conquistas da revolução, nos campos da economia, saúde, educação e ainda da destruição dos CLAP. Mais, os actuais contestatários do regime são mais ou menos os mesmos que intentaram o golpe de estado (falhado) de 2002, o povo da Venezuela não os deve ter esquecido tão depressa...
Finalmente e uma vez mais, o pecado, que afinal existe a Sul do Equador. É, na terminologia católica, um “pecado original”, ou apenas um “pecado venial”, para o qual sempre existirá um perdão? Seja qual for a resposta, o certo é que os oprimidos são de facto culpados da sua opressão. Ultimamente até, responsabilizados pelas crises do capitalismo, incapazes de assumir a sua culpa por pretenderem uma melhor distribuição da riqueza que eles próprios produzem. Nunca os ilibarão desta (e provavelmente de outras) culpa(s). Qualquer que seja a tentativa de encontrar uma alternativa, ao menos para uma melhor qualidade de vida, pela dignidade do ser humano, lá estará sempre alguém para lhes recordar o “pecado”. 
Não só afinal, a sul do Equador..


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