27 abril 2018

O ABRIL DA MEMÓRIA QUE NÃO SE APAGA


Pelas contas, já lá vão 44 anos.
Era a nossa juventude, que valia exactamente 25 anos. Contas redondas, com alguma nostalgia à mistura, com tanta história acumulada, com tanta luta, sempre por um mundo diferente, em que os privilégios seriam erradicados, em que a liberdade se juntasse com a dignidade, em que a democracia se confundisse com o exercício pleno da cidadania. Faríamos contas, poucos meses antes, equacionando uma partida para o exílio, como tanta gente boa deste País. 
Foram cravos, foram rosas e bandeiras vermelhas, uma cor rubra que dava cobertura à Luta, na “metrópole” e nas colónias, onde o regime apelidava os combatentes, de perigosos terroristas e facínoras. Os epítetos que afinal encaixavam que nem uma luva ao regime de terror, que com as variantes pretensamente “liberais” de Marcelo Caetano, se confundiam com a indignidade da miséria, a que durante mais de 40 anos, nos condenavam, com uma fatalidade inevitável, um fado permanente de pobreza e de medo.
Eram tempos de revolta, depois de França, em 68, onde a geração dos baby-boomers incendiava a moral e os costumes, com um batalhão imenso de gente da cultura e da política, contra uma burguesia decrépita e esclerosada.
Era tudo florido, menos aqueles que procuravam sobreviver à custa do preconceito e da mentira, os falsos profetas, que nada tinham para oferecer, excepto a guerra e a opressão. Andávamos sobre as cinzas, com aquela coragem infinita, própria de mentes e espíritos insubmissos. Ainda, aqui e ali, com muito sacrifício, porque havia camaradas a quem tudo foi proibido, a começar pela Liberdade. Quantas vezes haveríamos de chorar, quando percebíamos que podíamos ter sido nós, tão perto que estávamos uns dos outros, que quase nos confundíamos num só. Um grito, uma revolta, uma esperança.
Quando tudo aconteceu, estávamos tão surpresos e, ao mesmo tempo, tão disponíveis. Havia um mar imenso nas praças e nas ruas, que era um Povo e um País a nascer de novo. A Festa foi bonita, pá.
E assim contentes que nem crianças, começamos a nascer de novo. Uma nova vida, um novo caminho, que mesmo inserto, era novo e, como tal, pleno de vitalidade. Mas era também aquela Revolução Permanente, que Moustaki cantava, mesmo que na penumbra. Havia Torga e havia Zeca, e Sérgio e Zé Mário e Fanhais e tantos, tantos que a vista nem sequer alcançava. E havia o Alentejo, de Catarina, e a Reforma Agrária, a terra a quem a trabalha, tanto Mar, que chegava ao outro lado, a outros lados, onde a língua tinha tanta força que até arrepiava.
Lembramos tudo e mais alguma coisa, com tanto sentimento e tamanha responsabilidade, porque simplesmente fomos intérpretes, mas também (e principalmente) fomos cúmplices. Esquecemos quem éramos, porque apenas estamos dentro de uma família imensa de revoltados, agora envolvidos numa Revolução, onde as lideranças eram repartidas, mesmo que nunca tivéssemos sido poder, na plena acepção da palavra. Seriamos uma retaguarda segura? Uma imensa mole de revolucionários conscientes uns, outros nem por isso, mas todos grávidos de esperança e de transformação? Tudo isso misturado, talvez. 
Talvez.
E se a Festa duraria pouco, a nossa mensagem iria permanecer viva, até hoje. Se ainda estamos, com o peso dos anos em cima, prontos para marchar, mesmo que mais devagar, pela Luta. Nada nos dará tanto gozo, quanto saber que a chama permanece viva e, se calhar ainda mais forte. Talvez haja que não nos compreenda, mas nós compreendemos tudo (e depressa). Aí reside toda a diferença. 
Chamar Abril, é chamar-se Abril. Nenhuma dúvida, nenhum equívoco. Tudo muito claro, tudo muito bem definido.
Haverá que nos deteste. Ainda bem. Nada nos surpreende. Se somos minoria, afinal sempre o fomos e nos habituamos a resistir. Porque haveria agora que ser diferente?
O tempo vai passando e a memória de Abril permanece. Nunca como agora foi/é tão evidente  a distinção entre os dois lados. Nós que defendemos os ideais da Esquerda Revolucionária, estaremos sempre do lado dos que trabalham e lutam por uma sociedade liberta da exploração. Do lado daqueles que defendem um Mundo ecologicamente sustentável, pela partilha dos recursos e contra a pilhagem. Não desperdiçaremos um minuto que seja e que nos afaste do essencial. Lembramos Abril, agora e sempre, pela dignidade humana, pela Cidadania. Não poupamos esforços, nem perderemos tempo a tentar convénios ou acordos contranatura. Sabemos onde devemos estar. E sabemos também que nunca iremos pactuar com salamaleques, absolutamente dispensáveis. Penso que nunca enganamos ninguém, apesar de haver muitos que nos quiseram (e querem ainda...) enganar. Até onde iremos, não sei. A tal asserção “...não, não vou por aí!” tem todo o cabimento agora, como sempre o teve aliás.
Estamos agora mais velhos, um pouco cansados talvez. Quiçá ainda, um pouco desalentados com atitudes menos claras e pouco assertivas. Já não teremos eventualmente paciência para aturar quem nos queira atirar areia para os olhos. Perdemos, com o tempo, alguma capacidade de compreensão de certas posições pouco definidas. Apesar de não termos (nunca tivemos...) certezas eternas, temos a certeza, porém, daquilo que não queremos. Não é semântica, nem retórica, é mesmo uma atitude determinada.
Amanhã, aquilo que agora era, já não tem valor agora. O pretenso jogo de palavras tem todo o sentido. Pensamos e agimos, porque tal como diz Pessoa, “Agir, eis a inteligência verdadeira!”. Aquilo que ora sabemos tem um peso enorme naquilo em que nos tornamos. Valeu e vale sempre a pena. Abril é nosso, não o vamos deixar fugir, a gaivota voava e agora voa baixinho que mais parece outra coisa? Talvez, mas contudo voa...
25 de Abril, sempre!

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Fora do País, sente-se ainda mais. Porque sim. Mas vemos que o lá tão longe, é afinal tão perto. Onde se fala, como aqui, a língua portuguesa, vive-se Abril com um sentimento de partilha permanente. Cabo-Verde, o País da morna, é “culpado” por esta prosa que deslizou serenamente, da Praia ao Tarrafal, nas ruas até ao mar imenso. Tanto Mar!


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