26 dezembro 2018

  ACERCA DA QUALIDADE DE VIDA





A propósito de uma semana passada na ilha de Malta, quero reflectir aqui sobre um tema que, sendo na realidade transversal, nos tempos que correm, a todas as sociedades, não parece contudo ser tratado com profundidade e inteligência. A qualidade de vida deveria ser, neste século, a primeira das exigências, a que obviamente se juntariam outras, quiçá recorrentes e que têm a ver com a erradicação da pobreza, a defesa e a preservação da natureza e do ambiente, a igualdade plena de direitos de todos os cidadãos, enfim, o equilíbrio sustentável entre homens, animais e natureza, numa simbiose de sentimentos, direitos, deveres e felicidade. Mas, que fique claro, que nada disto tem a ver (ou tudo tem a ver...), com a natural e óbvia diferença de atitude e de interesses entre que produz e quem se apropria do trabalho produtivo, no fundo a grande questão que só ficará definitivamente resolvida quando deixarem de existir as classes sociais, como as conhecemos.

Num País com cerca de meio milhão de habitantes, e com a maior densidade demográfica do continente europeu, pude apreciar, natureza, cultura, respeito pelo ambiente, simpatia e consideração pelas pessoas. Também, deve dizer-se, um carinho muito especial pelos gatos. Malta não tem, ao contrário da grande maioria dos países ditos desenvolvidos da Europa, nem auto-estradas, nem centros comerciais, nem comércio ao Domingo. Não tem, á excepção de um pequeno centro urbano de luxo ocidental, casas altas, nem arranha-céus.
Tem, durante a noite, um sistema de iluminação, que diria exemplar, por ser parco em intensidade luminosa, preservando assim a noite e a sua característica natural, diferente do dia solar. 
Sente-se uma segurança nas ruas, nas cidades e nas povoações, discreta e calma, apesar da tremenda confusão no trânsito, que seria caótico, se mais viaturas houvesse em circulação.
A capital do País, outrora La Valletta, agora simplesmente Valeta, é um paraíso de beleza, na arquitectura, nas igrejas e nos museus. Nota-se, no País, um desenho equilibrado das cidades, que são pequenas e acolhedoras. 

E a qualidade? Se a premissa que a associa ao desenvolvimento, é completamente falaciosa, pior ainda, quando é associada ao crescimento económico capitalista, particularmente no seu estádio actual, de uma economia favorável à alta finança e completamente contrária aos interesses e expectativas da grande maioria da população, os trabalhadores. E tal conduz inevitavelmente ao desrespeito completo das pessoas e dos seus direitos. 
Se pensarmos no ritmo de vida que nos obrigam a suportar, dependente de horários rígidos e cada vez mais intensos, ao tempo perdido em transportes públicos de baixa qualidade, ao horário de trabalho semanal que não preserva o lazer e a cultura e juntarmos a isso, os hábitos e rotinas do capitalismo impiedoso que estimula, a toda a hora, o consumo e o desperdício, materializado nas catedrais de consumo, que são os malfadados centros comerciais, que crescem a um ritmo perfeitamente assustador e que reduzem as cidades à sua existência, pela “imponência” e pela violência urbanística que representam, se pensarmos bem nisso, depressa chegamos à conclusão que não é possível conciliar esse modelo com a qualidade de vida, que falamos, que debatemos e até que exigimos. Porque simplesmente não há compatibilidade possível, nem sequer imaginária, com aquilo que é um antagonismo perfeito entre o ritmo actual de vida e a qualidade de vida. Enganamo-nos, pensando que que é possível conciliar o impossível.

E aqui entra a possível consideração de pensar como éramos antes felizes, sem tudo aquilo que o novo estilo de vida aparentemente nos “oferece”. Primeiro, porque esse (este) estilo de vida é complemente avesso à aproximação entre as pessoas e à sua integração, porque exclui em vez de incluir, porque elimina em vez de integrar. Segundo, ao defender o paradigma do crescimento a qualquer preço, que produz desperdício e destrói o equilíbrio entre o Homem, a natureza e os animais. Terceiro, porque ao impor o trabalho como norma universal inflexível, esquece que o ser humano não “foi feito” exactamente para trabalhar, mas sim para fruir o tempo, no lazer e na cultura, no prazer e no descanso, na aventura e na partilha. Ou, como bem dizia Agostinho da Silva [1], “O homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta.”
Assim sendo, como se pode compreender então que o sistema de dominação capitalista imponha que se trabalhe mais e durante mais tempo? E, porque razão os trabalhadores aceitam o processo que os explora e que coisifica a sua actividade. A explicação está, segundo Marx [2], na alienação do trabalho e constitui, portanto, a essência da crítica do capitalismo como sistema económico e social.

Voltando a Malta, percebe-se que é (ainda) um país equilibrado de certa forma e porventura mais calmo e feliz, porque não cresceu talvez, da mesma forma que outros países, enredados na cena europeia, subordinada a regras e rotinas que são contrárias à qualidade de vida e, seguramente à felicidade das pessoas. Não vimos lixo nas ruas, não vimos pedintes. Não sentimos a pressão, que faz das cidades, um tormento de ruído e de lixo. Constatamos a existência de transportes públicos eficientes e baratos, não tivemos dificuldade em estacionar o carro em lado nenhum, mesmo contando que a época não é propriamente a mais propícia ao turismo de massas.

Talvez porque o momento seja adverso, talvez porque não é fácil (alguma vez foi?) mobilizar as pessoas, para pensar e agir, talvez por razões que nos ultrapassam, valha mesmo a pena questionar os modelos e paradigmas actuais que sufocam as pessoas e a natureza. E propor novos modelos e paradigmas que induzam o respeito, os direitos e a qualidade de vida para todos. 
Sobretudo não abdicando.
Na sua imensa sabedoria, Walt Whitman [3], dizia, ou melhor, apelava a que as pessoas não se resignassem, “A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, e nem fujas.” E, acima de tudo que não caíssem no silêncio, “Não caias no pior dos erros: o silêncio.”, porque não se pode desistir de intervir, “Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo.
Para não dizer que não falei de ... gatos.

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[1] Agostinho Baptista da Silva (1906 - 1994) foi um filósofo, poeta e ensaísta português.
[2] Karl Marx (1818 – 1883) foi um filósofo, sociólogo, jornalista e revolucionário socialista, de origem alemã
[3] Walter Whitman (1819 – 1892) foi um jornalista, ensaísta e poeta americano; as três citações, traduzidas do inglês, pertencem ao poema “Carpe Diem”, uma expressão recuperado do poeta latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.)


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