24 novembro 2025

 CHOVE EM LISBOA [vais para a cama descansado?]


 

Um jornalista anda de carro pelas ruas de Lisboa, no dia 11 de Novembro de 1975. Chove e ele observa a estranha movimentação nas ruas enquanto ouve notícias pelo rádio. Em flashbacks, são lembrados os 19 meses do processo revolucionário (o sempre assumido PREC), como foi tramado o golpe pelas forças reaccionárias e todas as sabotagens e boicotes que geraram descontentamento e mobilizaram alguns sectores das Forças Armadas contra a Revolução. Qualquer semelhança entre o relato adaptado de uma crónica da época e o Chile de 73 pode ser uma pura coincidência, ou uma lembrança de que tudo pode correr mal, quando as circunstâncias se aproximam.  

 

País Portugal, 1975. Vivemos momentos dramáticos desde o passado mês de Março onde, a pretexto da aproximação perigosa da “reacção” (termo frequentemente utilizado para apelidar as forças contrárias à evolução). O correr das debulhadoras da reforma agrária, nas unidades colectivas de produção, criavam a riqueza necessária, sem capatazes, nem patrões, uma linda imagem tornada real, incómoda e ostensiva para a burguesia, que ousadia, quando os trabalhadores rurais organizados tomaram a seu cargo a gestão e o trabalho das terras grandes, naquele Alentejo perdido à mercê dos latifundiários parasitas. Pelo Algarve nasciam “índios” que moravam na Meia Praia, mesmo ali ao pé de Lagos, onde o Zeca haveria de fazer a tal cantiga “da melhor que sei e faço” e que convocava os que ali viriam morar a não trazer mesa nem cama”, porque Com sete palmos de terra se constrói uma cabana”. Com os operários a tomarem conta da produção, eram fábricas em auto-gestão generalizada, um atentado ao direito burguês e à “normalidade do estado democrático”. Com as nacionalizações a desafiarem o poder da banca e ao potentado económico-financeiro que, segundo os burocratas, é necessário ao equilíbrio social, sempre fora assim, porquê mudar agora? Que ousadia.

 

No Chile decapitaram corpos inocentes, em Portugal, decapitou-se uma Revolução. Para lembrar que, depois do 25 de Novembro, fizeram regressar os senhores do dinheiro – um convite dos bons sociais-democratas - um ímpeto paternalista sobrepunha-se e dizia que o Partido Comunista Português era necessário para a consolidação da democracia. E, em vez de julgarem e condenarem os que incendiaram as sedes das Esquerdas, apelaram á “reconciliação” e deixaram florescer os fascistas envergonhados que, na sua imensa “bondade” se iam convertendo a “democratassemelhantes em tudo aos que os reabilitaram. Decerto muito poucos imaginariam queapenas um ano depois, viria o infame Barreto, um socialistaconvicto destruir por completo a Reforma Agrária, devolvendo aos agrários tudo o que os trabalhadores produziram e melhoram. A vitória dos que nada fazem, nunca fizeram, era servida de bandeja por aqueles que apelavam à moderação, achando-se alguns deles como pais e mães da democracia. Estranho desígnio. 

 

Em Lisboa chovia a potes, no resto do País também, ao que consta da meteorologia oficial. O sol da Revolução ocultado por óculos escuros e patilhas de comandante, eis que volta a paz aos quartéis, onde havia jurado bandeira de punho erguido, eu estava entre eles e não imaginava que tal (entre outras coisas) me haveria de custar a expulsão do exército português, após ter tido o privilégio de partilhar tanta coisa com o “nosso capitão” Salgueiro Maia, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Quanta ingenuidade.

 

O Portugal que estremecia, numa inventada “Comuna de Lisboa”, olhava para trás e nada via a não ser os destroços do que se havia construído para um presente solidário e um futuro prometido (apenas melhor?). Quanta maldade.

Nesse ano que começou bem e acabou muito mal, conhecemos "Tanto Mar", onde o Chico diz que queria mesmo “estar na festa, pá / Com a tua gente / E colher pessoalmente / Uma flor do teu jardim.”. Três anos depois, ele muda a letra, constatando, “Já murcharam tua festa, pá / mas, certamente / esqueceram uma semente / nalgum canto de jardim”. Na verdade, se existe ainda uma semente, deve ter sido bem capturada e impedida de florescer. Curioso, esta versão foi gravada ao mesmo tempo com um tema onde se pode ler, “Talvez o mundo não seja pequeno (cálice) / Nem seja a vida um fato consumado (cálice, cálice)”. 

 

Viria pois a europa connosco, com todas as promessas de igualdade e democracia social, de distribuição de riqueza e “convergência”. Quanta mentira. 

Chovia em Lisboa e nós fardados na rua a manifestar de punho erguido o que havíamos jurado na parada"... ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador, aceitar a disciplina revolucionária, lutar contra o fascismo e defender a Revolução Socialista”. Quanta ingenuidade, outra vez.

Regressamos ao quartel e esperava-nos a lei e o regulamento de disciplina militar do recém antigamente, o cutelo cruel do restaurado estado opressivo, bem pintado de cores “democráticas”, ou sociais-democratas enganadoras e falaciosas. Quanto respeitinho, de novo.

 

Viria mais tarde a denúncia, feita por um “Ser Solidário”, lá por meados dos anos oitenta, convidando-nos de novo a uma revolta, que já nascia na melancolia e nos convocava de novo. Primeiro, o chamamento à nova realidade, “A produtividade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas / Sempre atentas / E levas pela tromba se não te pões a pau / Num encontrão imediato do 3º grau.” Depois, a constatação da ordem cavaquista implantada no alvos dos anos oitenta (vejam a semelhança, primeiro para as Finanças e logo a seguir para “chefe de governo”, não vos lembra nada?), “Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva / E salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para / aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?” E, para terminar, a constatação actualíssima: “Entretém-te filho e vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes / a pensar em tudo neste mesmo instante / Enquanto tu adormeces a não pensar em nada”. Recordo aqui, ajudado pelo Manuel Loff, o que dizia o Cavaco, recém investido como novo salazar, a sua mulher, a propósito dos anos da Revolução, “Esta gente não está boa da cabeça, parece um país de loucos”. Dos autênticos “Loucos de Lisboa”, falaria em 1994, o João Monge: “São os loucos de Lisboa / Que nos fazem duvidar / Que a Terra gira ao contrário / E os rios nascem no mar”. Quanto vale o delírio de uma realidade assustadora.

 

Por aqui vamos então, com os tristes direitistas, eivados de Poder e acarinhados pela comunicação social burguesa, a querer festejar o que pensam (será mesmo que pensam?) ser a sua pequena vitória. No 25 do Novembro, outro tipo de loucura nada sadia, tomou conta da Revolução e tentou pintá-la de outra cor, tal como acontece com a “pintura” verde feita ao capitalismo. A social-democracia, sempre a trair os trabalhadores, tratou de virar a página, abrindo primeiro e escancarando depois, as portas aos fascismos emergentes, que hoje comandam por fora ou por dentro as políticas de miséria de um País perdido, no tempo e na memória. Quando hoje “Pergunto ao vento que passa / Notícias do meu país...”, recordo o ano de 1963 (era eu um jovem) quando Manuel Alegre escreveu aquele Poema que me traz "Uma lágrima no canto do olho"porque o associo à luta de Coimbra 69 e ao pontapé que demos no fascismo. Desgraçadamente calado pelo vento, este “nada me diz” de novo e faz da Trova, apenas a lembrança do Adriano que a imortalizou. E as notícias do meu País são hoje a imagem invertida da Revolução, em direitos vilipendiados, em ameaças à Liberdade, “cantando” sempre uma “democracia” pérfida e enganadora, num crescendo de pobreza e miséria, de propaganda e mentira, pejado de autênticos vampiros de fato e gravata que, tal como os pintava o Zeca, em  1963, “Vêm em bandos com pés veludo / Chupar o sangue fresco da manada” e que são, aos olhos de todos, “...os mordomos do universo todo / Senhores à força mandadores sem lei”, comendo sempre tudo e deixando algumas (cada vez menos) migalhas aos parvos que somos nós, embora a Ana nos lembre, "E parva eu não sou..."

 

Parvos ou não, os burocratas de Lisboa e de Bruxelas não sentem a chuva no pelo, porque têm pelo na venta, suficiente para ignorar o que se passa à sua volta. Sentados em cadeirões de pelo, instalados em poltronas ou viajando em jactos privados, não passam de charlatões. Assim os definia Sérgio Godinho, em 1971: “Entre a rua e o país / vai o passo de um anão / vai o rei que ninguém quis / vai o tiro dum canhão / e o trono é do charlatão”, enquanto denunciava: “No beco dos mal-fadados / os catraios passam fome / têm os dentes enterrados / no pão que ninguém mais come / os catraios passam fome”. Parece até que de 1971 a 2025 vai na verdade, “o passo de um anão”. Que triste fadário.

 

E Depois Do Adeus” que Abril nos trouxe, veio a estragação da Festa. Voltando à carga com o Chico, tratamos Novembro por você e dizemos com a ajuda dele, fechando a conversa: Apesar de você / Amanhã há de ser outro dia / Eu pergunto a você onde vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar / Água nova brotando / E a gente se amando sem parar”.

25 DE ABRIL, SEMPRE!


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