07 fevereiro 2010




Uma fábula chamada “Caim”








Dele disse um dia ter escrito uma das belas obras do século XX: “O ano da morte de Ricardo Reis”. Sobre o homem e a sua Lisboa, uma fantástica alegoria da vida e da morte. Sobre ele, escrevi mais vezes, de uma forma geral quando publicava qualquer coisa. Suspeito serei pois de gostar de ler Saramago e de objectivamente ser pouco objectivo, redundância perdoada à partida. Volta a escrever agora, incomodando conservadores de todas as matizes, consciências pesadas e enfeudadas em estereótipos e arquétipos à medida da sua (deles) curta visão de detêm da realidade, mas que sempre tentam impor aos demais. Fantasmas e medos de um passado que não capazes de reinventar. A estória de Caim é uma reflexão séria e, ao mesmo tempo, divertida: um misto de lenda, ficção, humor e ridículo. Que faz pensar, questionar, especular e até (porque não dizê-lo?) esmiuçar…
O homem e a divindade: o poder absoluto e um poder relativo, assim um pouco à medida do possível. Ou a luta pela autonomia, na realidade falaciosa e sempre condicionada. O diálogo de caim com o deus é um reflexo do diálogo do cidadão com o poder, nos dias de hoje: é interessante, politicamente correcto, mas na prática, não dá mesmo. As viagens no tempo do homem que quer mesmo enfrentar deus, ao ponto de eliminar cirurgicamente um a um, uma a uma, os humanos da arca; porque deixa de acreditar na dita espécie, que entretanto irá vingar 2 mil e dez anos (para já…); ele que apenas quer (e não é o queremos todas(os)?) fruir a vida e a liberdade.
O jardim do éden, que afinal existe mesmo para uma data de privilegiados, “…charlatões e charlatonas /discutem dos seus assuntos /repartem-se em quatro zonas/instalados em poltronas”, imagem mais que possível. Onde tudo existe à mão de semear, mas contudo bem guardado, afinal bens e riquezas, ao dispor das regras impostas pelos senhores de um mundo cada vez mais injusto, exclusivo e cada vez mais perigoso. Um mundo que desqualifica, limita e reprime os que tentam sobreviver e/ou que lutam pela liberdade e pela inclusão. Em “Caim” pode ver-se qual a qualidade da tal "Democracia” que nos ensinaram e que está a dar neste momento lições exemplares a todo o Mundo, a todos os mundos…

Alguém disse um dia que talvez este seja mesmo “Um Mundo ao contrário”. Saramago exalta o homem que desafia o deus arrogante, injusto, exclusivo e repleto de caprichos, (mais ou mesmo idiotas), que faz o que lhe apetece e quem se diz insondáveis serem afinal os seus desígnios. Para todas(os) que querem e que intervêm para a mudança, tudo isso não passa de mais um devaneio. Todavia, a atenção que porventura prestamos, nunca será demais, sendo porventura um dos ensinamentos que podemos extrair da obra.

Aos que ora reclamam /vociferam pela liberdade de expressão convém lembrar 2 abjectos personagens, que não sendo bíblicos, bem poderiam figurar entre os que, á boa tradição inquisitória, são capazes de “horrores, incestos, traições, violências, carnificinas”, de que fala o Autor: os PSDs Mário David e António de Sousa Lara; o primeiro ao declarar “abdique da nacionalidade portuguesa”; o segundo, ao considerar “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de “blasfemo”, tendo chegado ao ponto de o vetar, na qualidade de Sub-Secretário de Estado adjunto da Cultura, de uma lista de romances portugueses candidatos a um prémio europeu.


05 Janeiro 2009
Alf
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Citações:
o José Saramago
o Sérgio Godinho
o Tim / Zé Pedro (Xutos & Pontapés)

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Nota final: este texto foi escrito a 24 de Janeiro, uns dias antes da brilhante palestra do meu Amigo Tozé (o escritor António José Borges), que teve lugar a 27 de Janeiro, na Sociedade da Língua Portuguesa, sobre o tema em apreço. Constituindo matéria de pesquisa, no âmbito da sua tese de doutoramento sobre Saramago (que aguardamos ansiosamente a publicação), a palestra foi ainda um momento de aproximação de ideias, conceitos e de pessoas. De reflexão também. Bem hajas por isso Tozé!

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