20 maio 2010

Com papas e bolos se enganam os tolos…
Parte II – os Predadores

No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas pela noite calada
Vêm em bandos com pés veludo
Chupar o sangue fresco da manada

Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo, Eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

São os mordomos do universo todo
Senhores à força mandadores sem lei
Enchem as tulhas, bebem vinho novo
Dançam a ronda No pinhal do rei
Eles comem tudo e não deixam nada

Zeca Afonso, “Os Vampiros “- Extracto, 1963

Fonte: resistir.info/financas/imagens/fmi.jpg

Na selva animal, os predadores estão bem identificados. São os que procuram activamente as suas presas, que perseguem e capturam. Depois disso, ou as matam simplesmente ou se aproveitam delas continuamente para as sugar até ao tutano, até nada mais restar. Continuo a falar do reino animal propriamente dito, onde abundam espécies como o tubarão, a hiena ou o abutre. Os predadores nem sempre têm sucesso nas suas caçadas, pelo que tentam caçar o alvo mais fácil. Na maior parte das vezes, os predadores optam por escolher os animais velhos, doentes e mais fracos para a sua "refeição", deixando os mais fortes e robustos para se reproduzirem. Os predadores são normalmente animais de grandes dimensões, embora a aranha (por exemplo) sem ter propriamente essa característica, seja considerada também um predador. A hiena é um caso muito particular; para além de ter fama de rir, aproveita o trabalho de caça dos leões (abater a presa) e depois, em bando, consegue afugentá-los, impedindo simplesmente que eles se alimentem da caça que fizeram. Na Biologia, essa relação é caracterizada como “esclavagismo interespecífico”, a saber, um tipo de relação ecológica entre seres vivos onde um deles se aproveita do trabalho ou de produtos produzidos pelo outro de espécie diferente.

Quanto daqui poderemos reter para identificar, na selva liberal em que vivemos? Alguns ensinamentos, numa espécie de Biologia Social, desenhada com contornos cinzentos, mas onde contudo podemos encontrar os tubarões, os abutres, os predadores sociais. Como num baile de máscaras, ei-los a vestir a pele, prontos a alimentarem-se da riqueza por outros produzida, a repartirem entre si os lucros desmesurados, na ganância financeira e especulativa. Uma tenebrosa teia (a aranha…) de interesses, que manipulam governos e Estados. Que lhes importa a pobreza, a subnutrição de milhões de crianças, o desespero das mães, das famílias? Tal como a hiena, aparecem fulgurantes, com o seu riso sarcástico e o seu discurso fluentemente impiedoso, sugando o produto do trabalho dos outros. Ao contrário da selva animal, a lei (da outra selva) não os atinge. Falam. E falam do “interesse nacional”, da “conjugação de esforços”, da “repartição de sacrifícios, a bem da nação”. Como se os interesses deles fossem iguais aos nossos, como se fosse comparável o “sacrifícios”, palavra santa, invocada em vão (pecado!) para mascarar as deambulações de um mercado errante e desajustado em termos de equilíbrio social.
Esclavagismo interespecífico. Um conceito a reter.

A Associação Repórteres sem Fronteiras publicou, no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a lista de "40 predadores", identificando líderes políticos, religiosos e organizações terroristas que, sistematicamente apontam como alvo o trabalho dos jornalistas. "Poderosos, perigosos, violentos, eles estão acima da lei”. São 17 chefes de Estado e muitos chefes de Governo, juntamente com algumas forças armadas regulares e organizações mafiosas ou terroristas que são identificados na lista deste ano dos "predadores" da imprensa. Voltando à Biologia, existe a designada “pressão selectiva imposta a um outro e que conduz a uma corrida armamentista entre predador e presa”. Fantástica asserção esta, que nos transporta para a “nossa selva”, onde rápida e facilmente identificamos as similitudes apropriadas. Os predadores costumam procurar vítimas vulneráveis, seduzindo gradualmente os seus alvos com discursos por vezes (a maior parte das vezes) insinuantes, habilidosos enfim, populistas. Não fora assim, não teriam votos, comprados pela desfaçatez e pela mentira.

Em Dezembro de 2008, quando recebeu o Nobel, Harold Pinter, falou da protecção aos predadores, por parte de certos e determinados políticos: “… A linguagem política, tal como é usada pelos políticos, não se aventura por nenhum destes territórios, dado que, na generalidade, os políticos, naquilo que deles podemos ver com clareza, estão interessados não na verdade, mas no poder e na manutenção desse poder. Para manter esse poder, é fundamental que as pessoas continuem ignorantes, que vivam na ignorância da verdade, e até da verdade das suas próprias vidas. Aquilo que nos rodeia é uma vasta tapeçaria de mentiras, sobre a qual nos vamos alimentando…”. O alimento afinal somos nós, tremenda verdade! No seu discurso, de terrível actualidade, interrogava-se: “O que aconteceu com a nossa sensibilidade moral? Alguma vez a tivemos? O que quer dizer esta expressão? Refere-se a um termo pouco usado nestes dias – consciência? Uma consciência de agir não apenas com os nossos próprios actos mas com a responsabilidade partilhada nas acções dos outros? Já tudo isto morreu?”.

Eu diria que não morreu, mas que existe no “fascismo brando”, uma anestesia forçada, um estado de coma induzido, uma cegueira na cidade do Homem, um estado paraplégico de quase impotência. Lentamente porém, uma consciência cívica tenta inverter este estado. Pode levar o seu tempo a tentar desequilibrar a situação. A violência dos predadores merece uma resposta. A selva animal tem uma resposta. Na “nossa selva”, é preciso encontrá-la algures por aí…


(Fim da 2ª parte)

Obras consultadas:
× Starr, Cecie and Ralph Taggart “ Biologia: A Unidade e Diversidade da Vida “, 8ª edição. Ed. CA, Belmont, Pennsylvania, 2003
× Raven, Peter H. and George Johnson “Biologia”, Ed. McGraw-Hill, Boston, 2002

Sites consultados:
× http://www.coceducacao.com.br/bcoresp/bcoresp_mostra/0,6674,CESC-853-8070,00.html
× http://www.tiosam.net/enciclopedia/?q=Relações_ecológicas
× http://www.sobiologia.com.br/conteudos/bio_ecologia/ecologia22.php
× http://meioambiente.bicodocorvo.com.br/natureza/relacoes-ecologicas
× http://dn.sapo.pt/inicio/tv/interior.aspx?content_id=1559100&seccao=Media

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