21 junho 2010

Até sempre Camarada!

A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada


“Palavras Eternas”, Sophia de Mello Breyner Andresen



Fizeste da palavra uma mensagem, uma arma virada para o futuro. Fomos por ti “Levantados do Chão”, contra a opressão latifundiária, contra as forças da ordem, da lei e da hierarquia da igreja; disseste na altura “um escritor é um homem como os outros: sonha”. Como o sonho comanda a vida, imaginamos Belimunda Sete-Luas perscrutando no escuro o que outros não conseguem ver e Baltasar Sete-Sóis para quem a luz é fonte de visão, à sombra de um convento de que fizeste um Memorial. Foste “Todos os Nomes” e um só, numa conjugação perfeita, lembrando-nos o Livro das Evidências, “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens”. Afrontaste sem medos todos os poderes, foste crucificado pelos mesmo que crucificaram o outro, inverteste papéis, baralhaste os espíritos que das certezas se orgulham, conseguiste pôr um Caim a discutir com um deus tirano, arrogante, convencido e quiçá mal-formado, mostrando-nos a verdadeira face da hipocrisia de todos os poderosos. Pintaste um retrato único da cidade de Lisboa, numa das mais belas homenagens a Pessoa, no “Ano da Morte de Ricardo Reis”. Passeaste a tua classe pelo mundo inteiro, em 1998 com o Nobel da Literatura, prémio da alegria de escrever sobre o povo e sobre os direitos humanos.

E agora José? Por que nos deixas a pensar “No dia seguinte ninguém morreu "? O que retemos da tua sabedoria sobre a tal única inevitabilidade:” Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras…". Morremos um pouco contigo, uma mágoa imensa nos atravessa o corpo e a alma, de cansados que estamos de tanta injustiça, de tanta miséria. Mas, por outro lado, temos sempre a tua mensagem: “as pessoas não escolhem os sonhos que têm, São, pois, os sonhos que escolhem as pessoas, Nunca o ouvi dizer a ninguém, mas assim deve ser…” (1).
Como a tristeza nos invade, só um caminho nos resta; ensinaste um dia “As palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa(2). Queremos decididamente a outra margem, de uma certa maneira, que sempre andamos á margem…


É uma estupidez deixar perder o presente só pelo medo de não vir a ganhar o futuro.”(3)
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(1) In: “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, p. 143, José Saramago, Lisboa 1991
(2) In: “A Caverna”p. 77, José Saramago, Lisboa 2000
(3) In: “A Caverna”p. 251, José Saramago, Lisboa 2000


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