30 dezembro 2012


Estamos confortavelmente entorpecidos?


 
“… Now I've got that feeling once again
I can't explain, you would not understand
This is not how I am
I have become comfortably numb…
 
Gilmour /Waters, “The Wall”, Pink Floyd, 1979


 
 
 
 
 
 
A Praça da Cidade ostenta um objeto tridimensional, uma esfera com estrelas onde, ao contrário do sólido geométrico que lhe corresponde, se pode entrar e sair, com a mesma facilidade com que se circula, aqui as leis da física poderão não ter aplicação prática, apenas a matemática da vida merece lugar de destaque. Podes então entrar na esfera e deliciar-te com a vista exterior ou, simplesmente ficar de fora, comtemplando o interior, onde tudo se passa. Opções, portanto, apenas isso, podes fazer o que quiseres, sabendo de antemão que nada mais acontece, a não ser uns passos a mais no mosaico. Aliás, o mesmo que todas as situações da vida. Andamos mais um ano a entrar e a sair de situações mais ou menos complicadas, confortavelmente entorpecidos numa languidez de que só damos conta quando alguém providencialmente nos sacode. E, quando tal acontece, vamos para a praça manifestar a nossa ira que, por mistério, amouxa no dia seguinte. Insubmissão e desassossego não podem contudo ser simples palavras, que de vento em vento, agitam as consciências. Certos devemos estar pois de que, entrando numa luta, não mais dela saímos, a não ser quando os seus propósitos estão alcançados.  
Neste mundo terrivelmente ao contrário, que seja então raiva em vez de torpor, denúncia em vez de silêncio, luta em vez de marasmo. A uma verdade que dia a dia impunemente nos impõem, sem que se veja uma luz, uma ténue esperança de mudança, saibamos dizer definitivamente não. E porque, ao que parece, eles não ouvem, não querem ouvir, remetidos que estão ao silêncio da sua própria voz, cegos e surdos, detentores da tal verdade, que julgam absoluta, numa terrível ditadura branca, impregnada de terror, que sejamos capazes de gritar uma voz discordante, que produza impacto para uma estratégia de viragem.

Conveniente seria agora, em tempo de balanço final de ano, varrer tudo de uma ponta a outra, lavando pedras e calçadas com as águas de um Tejo inquieto, “Lava bancos e empresas/dos comedores de dinheiro/que dos salários de tristeza/arrecadam lucro inteiro.. ” [1] assim proclamava Adriano um símbolo do inconformismo e da resistência. Ainda o continuamos a ouvir, pelo menos para não entorpecer. 
A noite vem chegando e, com ela, os fantasmas que povoam o desconhecido. Falemos então. Hello/Is there anybody in there?/Just nod if you can hear me/Is there anyone at home?, assim começa sempre um chamamento providencial. Que alguém consiga ouvir e venha então para a rua, dizer o que de facto o atormenta, eu estou aqui contigo, disposto a ouvir e a partilhar o que te atormenta. Não desistas, que é cedo ainda, para um amanhecer duvidoso. Beber um copo na noite, pode ser uma saída. Ou uma entrada, para um diálogo que é urgente. E às tantas, proclamar “Nessun dorma!/Nessun dorma!” Que ninguém durma pois, remédio para uma noite gloriosa, que culminará num All'alba vincerò![2]

Estamos então confortavelmente entorpecidos? Provavelmente. Nada que não tenha remédio. Acordar é preciso, porque viver também é preciso. E agora que acordaste e provavelmente passeias na praça, entrando e saindo da esfera, aceita esta “receita”: “Para ganhar um Ano Novo/que mereça este nome/você, meu caro, tem de merecê-lo/tem de fazê-lo novo/Eu sei que não é fácil/mas tente, experimente, consciente/É dentro de você que o Ano Novo/cochila e espera desde sempre" [3]


[1] Referência ao poema “Tejo que levas as águas”, de Manuel da Fonseca e Adriano Correia de Oliveira, 1942

[2 ]Referência a ária da ópera Turandot de Pucini, 1924 (proclamação da princesa Turandot, determinando que ninguém deve dormir..): “Que ninguém durma!/Que ninguém durma!.../ Ao amanhecer eu vencerei!
[3]Extracto do poema “Receita de Ano Novo”, Calos Drumond de Andrade, 1967

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