24 setembro 2015

UMA LÓGICA PERVERSA


A libertação total do homem está para além da libertação económica,
está na sua afirmação plena na vida
 Anónimo, Maio 68 França, recolha de Daniel Singer (“Prelude to Revolution”, 1970)


Muito embora nenhum crédito mereça, algumas afirmações do PM não podem passar em claro, pelo desplante e hipocrisia que revelam. PPC disse, no debate das rádios (17 de Setembro). Para além do habitual chorrilho de mentiras que debita, o PM em exercício disse que o País se mobilizou para resolver os problemas e que as pessoas compreendiam agora bem os sacrifícios que fizeram. A afirmação contém uma pesada carga demagógica e parece querer reeditar o ditado popular “Quanto mais me bates, mais gosto de ti”.

Que as pessoas se mobilizaram até é verdade, mas para resolver os seus próprios problemas, das suas casas, das suas famílias, dos seus ascendentes e descendentes. A circunstância de terem os salários e as pensões cortadas, para além de diminuir drasticamente o já baixo rendimento familiar, provocou uma dose de infelicidade imensa nas pessoas, privadas que foram dos seus direitos mínimos, atingidas duramente na sua própria dignidade, sujeitas ainda por cima à vergonha incrível da caridade, protagonizada nomeadamente por uma conhecida figura da praça mediática. Os empregos destruídos, a imigração forçada de centenas de milhar de jovens, muitos deles altamente qualificados, todos os níveis que medem a qualidade de vida a atingirem valores inacreditáveis nas médias da EU. E, mais uma vez, todo este cenário de pobreza e de miséria, a contrastar como o acumular sucessivo de grandes fortunas, devido à mais despudorada e vergonhosa transferência dos rendimentos do trabalho para o capital. A suprema mentira que o governo cultivou, e ainda cultiva, de que os chamados sacrifícios foram “distribuídos”. A vergonhosa manipulação dos números relativos ao emprego/desemprego, para tentar passar a mensagem que a situação estava a melhorar. O massacre diário contínuo da exaltação das exportações e os seus prováveis benefícios contrastam com a realidade, pois de facto, apesar do seu crescimento, “…elas têm-se revelado insuficientes para pelo menos compensar o gasto pelo país com importações, e muito menos para dar qualquer contributo para o crescimento económico.”[Rosa, 2015].

A segunda asserção tem a ver com a alegada compreensão dos portugueses face aos sacrifícios. Do ponto de vista governamental, os mesmos seriam vistos sob o ponto de vista punitivo. “viveste acima das tuas possibilidades”, logo pagarás os teus desmandos. A punição é portanto clara, cortar no que é considerado um privilégio, a saber, no salário que corresponde a retribuição do trabalho, agora cortado às cegas, para castigar quem “errou”. Mas nem tal seria suficiente, tendo sido necessário “castigar” ainda mais, com o brutal aumento de impostos da era Gaspar. E as pensões, cortadas também, quebrando desta forma a lógica de um direito inalienável para quem trabalhou uma vida inteira. A cegueira ideológica deste governo atingiria porém, em meados de 2014, aquela que terá constituído a maior e mais completa ignomínia, aquando dos cortes no complemento solidário de idosos, que deixou mais de 38 mil pessoas sem qualquer prestação social. Diga-se entretanto de passagem que a “compreensão” dos portugueses a estas medidas de miséria, se viu na rua, nas manifestações partidárias e não-partidárias, organizadas ou espontâneas. Mas não só, se pensarmos na quantidade de vezes que as pessoas se mobilizaram para “brindar” as/os membros deste governo, com “recepções” dignas do seu descaramento.

A propaganda de uma coligação que parece remetida, ou mesmo acantonada, aos seus limites quanto ao número de apoiantes é, na realidade, um somatório de mentiras, mesclado de uma visão estreita e comprometida. Tem um lado patético, como seja a da exibição constante de números em que nem sequer acreditam, bem como o da aposta em “figuras de estilo” de baixa qualidade intelectual e moral e de duvidosa reputação[1]. Mas tem ainda um lado trágico, que representa uma manifesta incapacidade de lidar com a situação que ajudaram a criar na Educação, na Saúde, na Segurança social, na Justiça e finalmente na gestão ruinosa traduzida na venda do País a retalho, supostamente para diminuir uma dívida que não pára de crescer e já ultrapassou os 130% do PIB. Os números apontados para o valor do défice de 2014 confirmam agora esta lógica perversa.

Os comentadores “oficiais”, quase todos da simpatia e graça do governo e que ocupam a quase totalidade dos lugares nos espaços de informação, “dividem-se” para saber o que eventualmente é mais importante nesta campanha, se apresentar propostas para o futuro, ou se analisar e julgar o passado. Mais uma vertente da “lógica perversa”. Será que é possível ignorar um edifício a construir sem ter em conta um cem número de condicionalismos precisos? Qualquer acto eleitoral significa, antes de tudo o mais, um juízo de valor sobre a governação em curso, que assim se sujeita ao veredicto popular. Este governo tem que ser julgado, pelo menos politicamente, pelo que fez (e não fez) em 4 anos de governação. E a questão que se coloca é, antes de mais, como poderemos esquecer? Esqueceremos Gaspar e o que significou o tremendo choque fiscal? Esqueceremos a sua substituta, que deveria antes estar a responder pelos prejuízos que deixou ao País pelas suas swaps? Esqueceremos o zigzag permanente do Portas e dos seus submarinos? Esqueceremos os ataques constantes à Escola pública, com a entrega de concessões e benesses aos colégios privados, bem como a enorme machadada no Ensino Superior e na investigação, do inenarrável Crato? Esqueceremos a ministra de uma Justiça que cada vez mais é um privilégio de classe? Esqueceremos a campanha insidiosa sobre a sustentabilidade da Segurança Social, no sentido de descredibilizar o sistema e entregá-lo aos privados? Esqueceremos o apoio dado por Cavaco a tudo isto? Esqueceremos finalmente a submissão completa deste governo às pressões e chantagens de uma União Europeia, uma traição à Pátria, consubstanciando o que existe de mais reaccionário e servil enfeudamento a políticas do estado alemão sem qualquer rasto que pudesse significar uma qualquer negociação?

Embora a resposta a estas questões possa parecer clara e evidente, pelo menos para a grande maioria da população, a verdade é que tal não parece suficiente para arredar do poder este grupelho de fanáticos, uma minoria que inclusivamente é atacada por destacadas figuras dos 2 partidos que a apoiam. Pode esta lógica perversa impor os seus desígnios a um Povo e, ainda por cima, “legitimada” pelo voto? Ninguém deve muito provavelmente ter uma resposta definitiva. A conjugação de diversos factores e de situações de contexto, aliados a uma convenção de fortes interesses particulares, pode por vezes condicionar atitudes e comportamentos e assim induzir o sentido de voto. Muito embora nos queiram fazer crer, não vivemos mais num sistema democrático, tão-somente uma pálida imagem de Democracia, onde a própria liberdade é colocada em causa, pela perda constante de direitos fundamentais. O exercício da Cidadania é condicionado pelo medo. A dívida oprime, a subjugação é determinada pelo conceito fútil que a dívida tem que ser totalmente paga, sem que os cidadãos conheçam verdadeiramente como a dívida é constituída. O serviço da dívida, para além da opressão que supõe, encerra mais uma lógica perversa. Porventura a mais perversa de todas, já que determina, ou parece determinar, a subjugação do País. Analisando as propostas conservadoras dos partidos que dizem constituir o “arco governativo”, concluímos da inevitabilidade de viver eternamente para pagar aos bancos e ao sistema financeiro em geral. A pergunta é, se não esquecemos, vamos pactuar?

Os tais sacrifícios de que fala PPC são de facto estes, confirmados nas recentes notícias sobre o BES. Como poderemos admitir? Como ousam ofender os direitos dos cidadãos, em nome de uma lógica perversa em que nos enredaram? Como ousam propor-nos as mesmas receitas que desbarataram um País, que em 4 anos regrediu, pelo menos, 13 anos?
Vale a pena ter memória. Vale a pena parar e pensar um pouco. Ainda vamos a tempo.
Alguém nos diz, tem cuidado!


[1] Sobre esta matéria é curioso ler uma entrevista do jornalista britânico Philippe Legrain ao Bruno Maçães, um dos rostos da propaganda, perfeitamente ao nível da que fazia António Ferro ao regime fascista, mas sem atingir o nível daquele (…). Disponível (ainda) em: http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/08/exportar-propaganda-rasca-nao-e-facil.html

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