22 outubro 2015

O DISCURSO

o povo que desconfio
mal pode saber ainda
o que por ele tu fazes
armado só de palavra,
entre leis estreçalhadas
esperanças malogradas
e sinais de mundo novo
rogando decifração.”
Carlos Drummond de Andrade

1.     Tanta coisa para dizer
Conselhos não dou. Velho de juízo, a meu ver, é aquele que, em vez de dar, recebe conselhos dos jovens. Eles é que recebem, na sensibilidade vibrátil aos contactos da vida, o toque amaciador do futuro”. Com esta sentença, Gilberto Amado[1] se pronunciava contra aquilo que classificava de “exagerado culto do passado”, confinando às utopias o carácter central da acção cívica e política. Sem comentários extra que decerto poderiam trazer ruído à límpida asserção, tendentes a segui-la contra todas as posições retrópicas que nos têm assolado, procuro centrar a atenção no discurso e nas múltiplas facetas em que se apresenta.
Assaltados que temos sido na nossa intimidade e convicções, pelos arautos habituados a ensinar e a pensar, a orientar a forma ou formas de discernir, a impor o diktat do pensamento único, com a violência de um assumido fascismo branco, que nos resta então, reduzidos que parecemos estar à tal inevitabilidade, castradora de consciências. Reconfigurar? Readaptar? Quiçá, transpor a linha invisível do real. Como bem assinala João Lopes, em artigo de opinião[2] sobre cinema de Robert Zemeckis, “…o real é também o resultado do olhar que nele aplicamos, abrindo as hipóteses de um jogo figurativo, cuja fronteira instável é sempre a nossa identidade”. E como tal, reserva-nos este papel de reflexão crítica, muito embora, na maior parte dos casos, seja improvável possuir a totalidade dos dados disponíveis. Por isso, o jogo figurativo.
De entre uma montanha de coisas que temos, ou que gostaríamos, de dizer, avulta uma que habita o nosso desconforto: a suposta minoria que quer governar o País não tem condições para o fazer, por razões próprias inerentes ao seu “fechamento” e que os acontecimentos recentes precipitaram numa espiral de desespero. E, se assim é, para quê fazer de conta e pretender o impossível?
Na idade média, o termo “governo” estava associado à náutica, ou seja à navegação. Governar seria assim como dar um rumo á coisa pública, orientada numa certa direcção, ou numa direcção certa. E, nesta vertente de análise, como pode uma minoria governar, sem reunir as tais condições mínimas de apoio parlamentar? Só mesmo a insistência numa política suicida, escudada sempre, para mal do País, na mesma pessoa que, mesmo em final de mandato, persiste em defender uma parte restrita do eleitorado, precisamente o do partido a que pertence.
Dizer, neste momento, sim à diferença, é afirmar a tese da possibilidade de juntar vontades, alguns princípios e conceitos que as esquerdas historicamente sempre defenderam, no quadro da defesa da integridade do ser humano e dos seus inalienáveis direitos, livre do jugo da exploração permanente. Resulta então um discurso, mesmo que mínimo, da liberdade e da dignidade. Um discurso recorrente de defesa do Estado Social, da Escola Pública e do Serviço Nacional de Saúde. Pouco? Talvez, mas por si só definitivo, na união de conceitos e princípios que nunca é demais afirmar e proteger.
Por muito mais que queiramos dizer, numa altura de decisões rápidas, parece ser o suficiente.  

2.     Tanta coisa para não dizer
Aprendemos que o discurso sensato não deve expor sinais de potenciais fricções. Mesmo que tal possa incluir aquele sentido mínimo de calculismo que faz parte de todas as formas de fazer política. Tentamos mobilizar para o sucesso. Aprendemos ainda hoje essa vertente importantíssima da dialéctica, que ensina da possibilidade de superação das divergências. Pelo menos na exacta medida da consideração de que existem varáveis que não controlamos na íntegra. O que não significa de todo, esconder as divergências. Elas devem fazer parte de um portfolio em actualização permanente, de cada uma das correntes de pensamento organizadas, em termos sociais, em partidos políticos.
Em termos de coisas para não dizer, importa então, não alimentar polémicas, que embora possam parecer estimulantes, não acrescentam qualquer valor, na actual conjuntura.

3.     O que fica…
No centro da confusão, emerge um outro tipo de discurso, que aqui se designa simplesmente, discurso porque sim. Apenas para afirmar uma certa razão, que a terá por certo, numa perspectiva simplista. Goethe dizia, “Quem deseja ter razão decerto a terá com o mero facto de possuir língua”. Apenas esse facto o justificará. Mas concerteza que não só pois, segundo a perspectiva de Foucault[3], existe sempre “…um discurso que exerce um constrangimento sobre terceiros, relativamente à verdade que encerra, independentemente da sua substância”. E, em vez de ser um acto isolado, ele acaba por configurar um discurso político, transformado em meio de persuasão, que se manifesta por todo e qualquer meio de comunicação, pretensamente em nome de um putativo “interesse nacional”, de facto ao serviço da norma de uma elite consensual que não desiste da sua forma de dominação.
É o que fica, para estarmos atentos.



[1] Gilberto Amado (1887/1969), jornalista, jurista, político e diplomata,  Estância, Nordeste, Brasil
[2] Os desafios de Zemekis”, artigo publicado a 21 de Outubro no DN
[3] Michel Foucault (1926/1984), filósofo e historiador, Poitiers, França

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