01 novembro 2015

O DISCURSO – 2


Se, reproduzindo o discurso alheio,
a gente o altera tanto
é porque não o compreendeu..”
Goethe

1.    Vale a pena ainda dizer
Vale a pena analisar, debater e porventura guardar as palavras ditas e escritas que, por estes dias, têm sido produzidas, muito ao sabor das circunstâncias.
Rompe-se o silêncio na sociedade civil. Destrói-se o incrível muro, erguido diga-se de passagem pelos próprios, de um pretenso “arco de governação” em Portugal. Que deu os frutos que se conhecem, mas que talvez não esteja tão à vista quanto hoje. Talvez não tivesse sido líquido para a grande maioria das pessoas a tremenda teia de interesses partilhada entre 3 famílias partidárias, aparentemente diversas, mas quiçá irmanadas na absorção completa dos lugares disponíveis do aparelho de Estado, para as suas cliques. Uma aliança contranatura, de um discurso por vezes antagónico, mas a que se parece sobrepor sempre a mesma filosofia dura de uma cruel e sangrenta disputa de lugares, destinada a ocupar pastas ou postos-chave em conselhos de administração, assessorias diversas, de conhecidas prebendas.
Com a ruptura que parece protagonizar o entendimento das Esquerdas, abre-se provavelmente um novo caminho. Se para alguns é uma nova esperança, para outros será seguramente o fim de conhecidos privilégios. Se as direcções partidárias estudam e analisam um novo discurso, tal só poderá significar uma nova percepção da realidade. Um exemplo paradigmático será porventura o anúncio, outrora improvável, da apresentação de uma moção de rejeição única ao programa do governo recentemente empossado. O novo discurso representará decerto um enorme salto qualitativo relativamente a costumeira fórmula adoptada por PCP e BE, que analistas, comentadores e politólogos classificavam como “cassete” típica de quem apenas aspirava ao protesto e nunca a governação.

2.    Vale a pena esperar
Todas as semelhanças e diferenças são possíveis. A adopção de um formato discursivo de tipo novo, é necessária e urgente. E poderá significar uma efectiva ruptura, desde que se baseie numa real alternativa de poder, contra a minoria que parece não querer entender que existe mesmo uma alternativa. Acredita-se que seja penoso, para quem sempre afirmou a inevitabilidade, pela imposição de uma força legitimada, lidando sempre muito mal com a diferença, ver agora a alternativa surgir e ficar de certa forma impotente para a deter. O discurso desta vez não poderá ser somente o de uma alternância, pura e simples, essa já foi durante décadas. Para além de dever ser um discurso claro e afirmativo, ele deverá ser também um discurso de conteúdo e não apenas de retórica. Diz por estes dias que esta deu agora lugar a dialéctica, enriquecendo desta forma o debate político, acrescentando-lhe a substância que a retórica lhe retira.  
Quem foi diminuído, subjugado e traído espera decerto muito. Espera que lhe seja em primeiro lugar devolvida a dignidade perdida. Espera ainda que lhe sejam apresentadas medidas claras, tendentes a devolução das condições de vida condigna. Espera certamente a inversão de (pelo menos) algumas decisões ultrajantes do anterior governo que levaram a venda do País a retalho, sem quaisquer contrapartidas que não tenham sido a camuflagem de um défice necessariamente maquilhado. Esperam finalmente o reconhecimento de uma efectiva cidadania, contra o medo ainda instalado e que a Direita utiliza diariamente de uma forma vil e soez. Este é o discurso típico das ditaduras e dos regimes que se sentem ameaçados na sua legitimidade e que não tem já outro recurso que não seja a forma típica de intimidação como arma.
É muito positivo que a “coligação” das Esquerdas tenha escolhido temas como a defesa do Estado Social, dos salários e das pensões e da reposição das condições de vida. Mas é seguramente necessário que o discurso seja de mudança. Não compreender isto seria dar um golpe fatal nas esperanças da maioria da população, que acredita e aposta na Esquerda, para um futuro diferente. O discurso volta uma página decisiva. É mesmo necessário aproxima-lo da vida das pessoas, um discurso que fale a verdade, uma linguagem que faça as pessoas sentirem que vale a pena viver em sociedade de uma forma decente e feliz. Afinal, um discurso de Liberdade. E há quem o esteja a fazer, aqui e agora. É só mesmo preciso ouvir, ler e pensar um pouco. Vale a pena apostar num discurso que conjugue o Condimento, a Cidadania e o Desenvolvimento. Um discurso com futuro, contra o medo.

3.    Vale a pena sonhar
Curioso será então reflectir, caso se inverta o rumo das políticas do centrão partidário que, durante cerca de 40 anos dominou, o que vai ser da enorme multidão de comentadores, painelistas e outros quejandos, que vivem à sombra do regime, que alimentam e são alimentados por ele. Sempre unânimes, mesmo que por vezes ainda não, sempre em conivência com a inevitabilidade, pregando de sua cátedra o discurso confortável, conformista e naturalmente cúmplice, terão provavelmente o mesmo fim dos que ajudaram a promover e a incentivar. E que diriam se, numa qualquer esquina da cidade, deparassem com este diálogo:
“- A que horas começa a Revolução?
  - Ah, meu caro, a Revolução é um sentimento, é uma sensação única e uma necessidade de mudança (…)
 - A que horas começa?
 - Às três, na praça central…”[1]






[1] Extraído e adaptado de “O Trocicologologista, Excelência”, de Gonçalo M. Tavares, Ed. Caminho, Lisboa 2015, pág. 7

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