20 outubro 2017

A CHAMA INDELÉVEL DA PROPAGANDA


Toda a propaganda de guerra, toda a gritaria, as mentiras e o ódio, 
vêm invariavelmente das pessoas que não estão na luta
George Orwell

Se porventura fosse fácil escrever no meio de tanta tragédia, poderia bastar colar aqui e ali meia dúzia de palavras de circunstância, misturadas talvez por declarações mais ou menos correctas, do ponto de vista político, produzindo um texto equilibrado e sensato, como nos habituaram a ler, de há muitos anos a esta parte. A mistura de palavras-chave, devidamente escolhidas e tratadas, com o sensacionalismo barato da parafernália tabloide, entre imagens abusivas e comentários balofos e desprovidos de humanidade, constitui um caldo de cultura bem cozinhado, na era da pós-verdade. A grande maioria da comunicação social portuguesa enquadra-se nesta perspectiva, servindo a causa da inevitabilidade, como convém ao sistema de dominação intelectual (pelo menos) de uma população que podendo parecer acrítica, vai, entretanto, “aprendendo”, como teria que ser e sempre assim foi.
Se a memória é curta, tanto melhor. A apreensão da notícia é mais eficaz, tem mais impacto, é certeira quanto ao alvo e produz facilmente estragos, são breves momentos de lucidez colectiva, a bem do sistema de dominação. Não há contraditório possível, quando a notícia, deixa de o ser e passa a incorporar a “verdade” do sujeito que a produz. Porque, ao produzi-la, tem como objectivo, a manipulação. 

Parece sempre bem fazer afirmações que configuram “dados adquiridos”, como por exemplo, “a Ministra não está no lugar certo, é um erro de casting”, “a Ministra tem que ser demitida, ou demitir-se”, “o Estado não cumpriu o seu papel” e outras do género. Ficam bem, parecem ser consensuais, embora apenas o sejam no círculo restrito de corredores das redacções e de algumas sedes partidárias referenciadas. Contudo, devidamente e meticulosamente trabalhadas, são amplificadas e chegam aos lugares mais recônditos. Esse é o papel daqueles que têm nas suas mãos o poder da comunicação, do dinheiro e da finança, que detêm e passeiam nos ditos “corredores”. Assinala-se que tudo isto acontece num reduzidíssimo número de quilómetros quadrados, na capital de um País que arde, com a enorme responsabilidade deles próprios. O aproveitamento político, que facilmente se classificaria de vergonhoso e de despudorado sentido de horror, é a face visível desses “agentes”, que afinal nada têm a oferecer ao País, a não ser, menos Estado, mais miséria e pobreza, mais cortes, menos respeito por quem trabalha, mais submissão, mais dívida, e sem sombra de dúvida, mais tristeza. O espectáculo mediático montado nos últimos tempos pelos ditos “agentes”, que agora parecem constituir-se num clube privado de contras, é a prova da sua indigência política. Nada lhes interessa o que arde ou deixa de arder, fica muito longe deles, não se querem “queimar”, embora tenhas as mãos queimadas de subjugação.

Na vertigem do seu incomensurável ego, artificialmente forjado diante das câmaras da TV, dos microfones da Rádio e das redacções dos jornais, os agentes comentadores-analistas cavalgam diariamente um discurso ascético, desprovido de linguagem, a qual deveria ser o verdadeiro cerne da política. A primeira função da maioria da acção desses agentes parece confinar-se à construção de cenários artificiais que são montados com afinco, numa afanada senha de tentar reconstruir uma realidade que lhes seja tão ou mais próxima da sua racionalidade limitada. Uma vez que não capazes de entender a política na sua dimensão sistémica, analisam e/ou comentam sempre de forma autoritária, forjando e encorajando sentimentos primários nas massas, que é suposto não entenderem a dominação a que estão sujeitas. Afinal o tal populismo, que dizem querer combater. 

Nos últimos tempos, após se ter estabelecido o acordo parlamentar das Esquerdas, os agentes analistas-comentadores têm tentado desesperadamente redesenhar a cena que lhes seja mais favorável. De facto, as épocas já idas dos variados “blocos centrais” constituíam o seu terreno preferencial, um pântano imenso onde florescia a gestão do mais-ou-menos-na-mesma e da querida inevitabilidade, ao sabor da corrente indelével da austeridade consentida.
Exemplos recentes, que vão desde a “crise dos incêndios” à gestão da discussão do OE, passando pelo “roubo” de Tancos, são paradigmáticos, na sua forma, conteúdo e, claro, intenção. Se atentarmos em títulos como “OE18-Continua o sobe-e-desce dos impostos” (DN, 14 Outubro), “Inimputáveis?” (Público, 15 Outubro), “Isto para não falar de Tancos” (Público, 15 Outubro), mostram claramente uma atitude primária, mas persecutória, com intenções evidentes de colagem ao discurso da Direita e não para informar, ou mesmo comentar. Sempre e somente para produzir manifestos, qual discursos panfletários de comício ou manifestação. Aliás, para tal se encontra devidamente formado o novel clube privado de contras, já referido, com base no projecto “Observador”, uma clara opção da Direita conservadora e que já estende os seus tentáculos (garras?) a órgãos de comunicação social  como o DN, o Público, a TSF e a SIC, para citar apenas aqueles que têm alguma influência no nosso País e/ou detinham alguma tradição de qualidade e/ou por onde passaram (antes de serem meticulosamente “afastados”) jornalistas, editores ou analistas de reconhecido prestígio.
Os membros desse clube, “agentes de informação”, julgam-se intérpretes da vontade popular e de um alegado sentimento colectivo a que pretendem dar voz. O exemplo mais comum é, entre nós, a promoção de fóruns ou painéis, onde se “dá” a voz aos cidadãos, não sem antes se promover, através de um agente, a lavagem prévia das consciências, sob a forma de uma “opinião” tida como de um “especialista”. Estão, para todos os efeitos, bem longe dos cidadãos, dos seus anseios e preocupações, nem sabem como vivem, onde vivem e como por vezes trabalham em condições infra-humanas. Contem pelos dedos, aquelas e aqueles que se dedicam a escrever e a investigar sobre a matéria.

Um outro espectáculo tem, entretanto, lugar em Belém. O inquilino actual, homem de muito saber e “sabedoria”, demonstrados durante anos a fio com a fabricação de “factos políticos”, aproveita para embarcar na onda. Sob uma pretensa neutralidade e usando (por vezes, abusando) da força da palavra e da coloquial eloquência, misturada com um notável sentido de oportunidade, vai tentando desenhar uma presidência com contornos peronistas, cuja perigosidade é por demais conhecida. Desde o início do mandato, que a sua interpretação do uso do poder se baseia no contacto directo com as massas, fazendo-se “um amigo pessoal”, preocupando-se com cada situação individual, estabelecendo laços especiais com as classes médias e baixas, criando condições para que se exerça o que se pode designar por autoritarismo consentido. O ensaísta e escritor Umberto Eco introduziu, nos anos 90, um conceito a que chamou Ur-Fascismo, que teria como base e sustentáculo, um “populismo qualitativo”, que não reconhece, ou “desconhece”, os Direitos Humanos e que concebe “o povo” como “...uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime a vontade comum”, e que derivaria de uma “frustração individual ou social”. Então, em momentos determinados, surge um líder (assim?), que se assume naturalmente como intérprete directo do povo.

Interessante o aforismo popular, “Brincar com o fogo queima”. O brincar até que é bom, se não queimar. E, para queimar, temos os “agentes incendiários” que (infelizmente) pululam por aí.
Até ver.


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