07 maio 2020

ESTAMOS CÁ


Para além de todas as vozes que por vezes nos parecem tão distantes, que até parece que vivem noutro planeta, há ainda aquelas do antigamente, que pregam por aí, disfarçadas de qualquer coisa. Podem continuar a disfarçar-se, todavia irão, na devida altura, mostrar as garras e atacar.
Há uma carta do José Castro [1], de tal forma transparente, que nos faz pensar como ainda seria se aquela ditadura ainda existisse. Releio a sua descrição com olhos, ouvidos e o resto do corpo, sentido a realidade da época “...boçalidade, selvajaria e brutalidade da máquina repressiva do regime de Salazar e Caetano, com mais de 20.000 inspectores, sub-inspectores, chefes de brigada, agentes, funcionários e informadores.”. E, já agora, pensando que existem ainda lugares, por esse mundo dentro, onde cidadãos sofrem o que muitos sofremos à altura.

Hoje, não é assim, passado que é quase meio século, ninguém no seu perfeito juízo seria capaz, por exemplo, de vir propor o isolamento da comunidade cigana. Ah, é verdade, aconteceu mesmo, com proposta para o Parlamento. Precisamente há 2 dias a esta parte, vejam só...
Na realidade e, apesar de todas as mudanças que a sociedade enfrentou, de todas as aprendizagens que fizemos (e vamos continuar fazendo), parece que as velhas ideias estão de volta, os velhos hábitos tentam reposicionar-se, as velhas “soluções” aí estão.

Dentro do tanto que há para fazer, contaremos connosco. Decerto que sim. Não podemos (nem devemos) esperar que aqueles que fizeram tudo mal, nas crises anteriores, apareçam agora, disfarçados de mentores, a vomitar propostas e soluções que nada têm a ver connosco, nem com o País.
Descubro, por exemplo, nos últimos dias, a propósito da pretensa concepção de “salvar” ou “recuperar” a economia e “ajudar” as empresas, a verdadeira intenção que lhe subjaz. E digo isto, depois de ouvir dezenas largas de profissionais de pequenas e médias empresas contarem os seus dramáticos casos, das suas dramáticas situações, das suas idas ao banco, para saber do andamento dos seus processos, e depararem com um muro de silêncio, ou de indiferença (tanto faz). Aquilo que precisam (ou precisavam), falavam de 3 a 5 mil euro, para “acudir” e tentar ficar de alguma forma resistir, tudo é recusado, ou, pura e simplesmente ignorado. Entretanto vai-se sabendo que, de novo, há cerca de 10 ou 20 dias a esta parte, há bancos que estão (de novo) a escrever e a ligar directamente a pessoas, para saber se querem aderir a uma linha de crédito de 5, 10, ou mail mil euro, sem que essas pessoas tenham feito rigorosamente nada, para tal (eu posso testemunhar isso, directamente!).
E depois não querem ouvir que há entidades que se estão a aproveitar da situação de crise para cometerem os exageros do costume, num desrespeito imenso para com a comunidade, apenas para se “acomodarem” e marcarem posição na conjuntura.

Porque, meus caros, o capitalismo tem uma relação muito particular com a fome e a miséria. Ao invés de as tentar minorar, alimenta-se delas, fazendo delas a sua bandeira negra. Alguém lembrava [2], há 4 anos atrás, que estava em re-ascensão uma “nova” doutrina, “... com raízes ideológicas no neoliberalismo e que tem sido pouco analisada, apesar de ser responsável pelo autoritarismo na Alemanha e de ter deixado uma "marca indelével" na fundação e construção da União Europeia”. Sim, o chamado Ordoliberalismo, responsável pela tentativa de estabelecer uma “nova ordem económica”, baseada nos mercados e na sua preponderância relativamente a políticas de desenvolvimento sustentado dos Estados (na realidade, a sua génese, remonta ao pós-guerra, anos 50 do século passado). Na prática, uma (re)construção europeia, onde aqueles (Estados) abdicam da sua soberania e “aceitam” ser comandados pelo medo e pela submissão a tratados, convénios e regras que não foram, na sua grande maioria, ratificadas por quem quer que fosse.

Temos agora já uma pequena noção do que se poderá passar, depois disto? O meu Amigo, Manuel Correia Fernandes coloca, avisando antes que as pessoas estão (ainda)  “...confinadas a um território e aprisionados num espaço físico, arquitectónico e urbanístico que são a cruel expressão da sua falta de liberdade no espaço que é seu.”, têm sentido? A resposta quase cruel, parece clara de tão evidente: por mais sentido que façam, e fazem muito, nomeadamente para quem luta diariamente com um salário de miséria, sem habitação condigna, sem aquecimento, sem dinheiro para alimentar os seus, sem, sem.., aquelas questões são apenas (se é que são) colaterais, para a grande parte das “cabeças pensantes” deste País. Não porque não pensem nelas, não porque não concordem, não que pessoalmente não as defendam também, não porque as não subscrevam até nalguns dos seus Programas, não que conceptualmente, não as apreciem e até façam delas bandeira, quando convém.
Nada disso. Apenas, “não estão na agenda”, muito simplesmente. 
Talvez um dia, quando a situação estabilizar (mas quando???), talvez quando todos, na dita Europa, estiveram de acordo. Por exemplo, até estamos de acordo em acabar com os off-shores..., quando todos os outros assim o fizerem.

Por favor, digam-me tudo, menos que “somos todos iguais” e que “a crise afectou-nos a todos por igual” e que “temos que ter respostas conjuntas” e sobretudo que “temos de dar as mãos” (não, não é lavar as mãos...), para reconstruir. Apesar de (quase) ninguém acreditar em tais conceitos, há sempre uma voz a sussurrar-nos cá dentro, simplesmente porque o tipo da televisão disse, porque o comentador opinou que assim, porque o jornal garantiu que assado. 
Projecta-se aparentemente, na sociedade contemporânea, uma linguagem sem sentido, que fala muito sem dizer nada e que se espalhou de forma vertiginosa. Aqui há uns anos atrás, Umberto Eco, alertava, em uma conferência proferida na Universidade de Columbia, a propósito de uma celebração da liberação da Europa, para o risco das “novas formas de linguagem”, nos “novos fascismos”. Estávamos em 1995 e, desde então não parou de crescer, aquilo que o pensador italiano Igor Sibaldi classifica agora como uma verdadeira epidemia real. Chama-lhe “Rumorese”, que é afinal, “falar muito sem dizer nada”, articulando termos feitos (fabricados) que não têm significado real, mas que, pela sua aparente ambiguidade, acabam por entrar no vocabulário corrente, fazendo escola e tomados como “verdades absolutas”, são utlizados de forma contínua e continuada, para produzir o efeito desejado: o Medo.
Poderíamos dar exemplos variados. Fiquemo-nos por estes, sobejamente conhecidos: “reformas estruturais”, “interesse nacional, acima do interesse partidário”, “medidas impactantes”, “políticas de ajustamento”,...

Acima de tudo, devemos (temos de...) lutar contra o medo. E contra a exclusão também, no mínimo para que as pessoas sejam vistas como cidadãos e não como números. Lembro apenas aqui uma declaração curta de Martin Scorsese, no ano de 1973, a propósito daquele filme perturbante que foi (que é, aliás) “Mean Streets” (“Os Cavaleiros do Asfalto”, em português): “...uma certa sensação de exclusão, de viver nos limites da sociedade, ou à margem, melhor dizendo. As pessoas não contam, supostamente não contam. Mas, mesmo assim, estão lá

Estamos cá!

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[1] “Do confinamento sanitário às prisões da ditadura”, in: https://www.esquerda.net/artigo/do-confinamento-sanitario-prisoes-da-ditadura/67574           
[2] Francisco Louçã, no livro "Segurança Social", uma obra colectiva

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