15 junho 2020

A PALAVRA TRAIÇOEIRA

O que valem as palavras?
No entender de Mestre Saramago, “As palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa[i]
O contraponto desta inteligente e sábia imagem, poderá ser encontrado na conhecida alegoria atribuída a um (pouco "abonado") presidente do Brasil[ii] que dizia ter encontrado o País à beira do abismo, “Connosco, vamos dar um passo em frente”.
O certo é que (as palavras) valem o que valem, o seu uso pode ser certeiro ou fatal, passando por degraus intermédios de complexidade.
Há uma que tem sido utilizada por Costa, para simbolizar a transição entre Centeno e Leão. Segundo ele, a política económica e financeira do País, orçamental quiçá, será então de “continuidade” e que a dita transição se faz (assim) de forma natural e sem sobressaltos.
Os “socialistas” modernos não gostam de sobressaltos, lá terão as suas razões. Na verdade, se sobressaltos tiveram existido, porventura não estaríamos agora com uma brutal dívida pública, agravada pela pandemia. Será que uma vez mais à beira do abismo? Cuidado com o passo em frente!
Mesmo partido do pressuposto que os portugueses (dizem) gostam da estabilidade, poderia questionar-se que portugueses afinal gostarão da “estabilidade” de ficarem na rua, sem emprego e sem habitação, sem o mínimo das condições de uma existência condigna, sem expectativa alguma (que conheçam) de ver mudar tal estado? Mas há alguns que gostam. Que gostam que tudo fique na mesma, mesmo que alguma coisa sejam obrigados a mudar, oh aparências.
A outra margem
O problema é saber se queremos atravessar e passar para a outra margem. É o rio que nos oprime ou são as margens que o oprimem a ele?[iii] Retórica à parte, o que Costa pretende mostrar, para não assustar ninguém, é que tudo vai correr bem, mesmo apesar de Centeno ir embora, para o tal “outro ciclo”, que poderá ser uma "ciclovia inclinada", lá para os lados da Rua do Comércio[iv].
A questão é porem algo (para não dizer completamente) diversa. E resume-se a isto: se continuar a mesma política de baixos salários e de falta de investimento público, agora que as condições concretas são bem diferentes de antes, o mais certo mesmo é o passo em frente da alegoria.
Impunha-se uma entrada de leão? Talvez, se coragem houvera para enfrentar o rio e querer passar para o outra margem, onde por exemplo, a aposta firme num tipo de desenvolvimento completamente diferente do que temos e onde se aposta fundamentalmente em duas “verdades” perversas, sendo a primeira aquela que reza que o desenvolvimento tem que ser o mesmo em toda a parte e a segunda que impõe o crescimento infinito, que já se viu onde irá dar.
O desastre?
Sim, o mais provável. Entretanto andaremos (por quanto temo ainda?) entretidos com a miragem dos não-sei-quantos-milhões da União, fazendo contas à laia do que não existe, ansiando (fé?) por melhores dias, com a mesma política de sempre: CONTINUIDADE, palavra traiçoeira, senão mesmo, maldita.
Vale a pena lembrar
Mesmo dando de barato que muito foi conseguido, no primeiro governo de Costa, onde campeava em Centeno, esquisito à primeira vista, tem que dizer-se que tal aconteceu devido sobretudo à enorme pressão da Esquerda Parlamentar e, de alguma forma também, a uma conjuntura internacional algo favorável.
Mas (há sempre um “mas”), nem Costa, nem Centeno queriam alcançar uma outra margem, tal não era aliás “permitido” pelos barqueiros de serviço, em Bruxelas e Estrasburgo. E, nem um nem outro, ousariam sequer fazer algo que desagradasse a quem comanda lá fora, continuando assim “bons alunos”. E nós, olhando o rio...
Um agoiro escusado
Um governo houve, de má memória, neste País, que quis utilizar uma outra alegoria. Chamaram-lhe “evolução na continuidade[v]. Me perdoem se faço injustiça, que os tempos agora são outros, as pessoas são outras, outro ainda é, apesar de tudo, o País que acabou, num belo dia de Abril, de derrubar quem pensava que enganava tudo e todos, com palavras de algodão.
Apenas se mostra um perigo iminente: falar ”às massas” de forma matreira e de sentido duvidoso, nunca dá bom resultado, é a tal teoria que se pode enganar durante algum tempo, mas depois...
Atravessar o rio...
No momento em que estamos a assistir a um aumento significativo do desemprego, urge pensar diferente, olhar para o rio, que entretanto vai crescendo em caudal, e ver (ou simplesmente pensar que) pode haver algo, na outra margem que seja minimamente interessante: onde possa não existir fome, nem miséria, nem desemprego, onde possa existir uma casa para qualquer um, onde os limites da decência não permitam que ninguém fique para trás, nem que se afunde simplesmente no rio, só porque uma qualquer cheia se avizinhe.
Tudo menos continuidade!
Aprender as lições, possivelmente lutar mesmo, em certas situações, contra a corrente, olhar o rio com a coragem necessária e com aquela força que significa por vezes audácia. De fazer diferente. CONTINUIDADE NÃO, OBRIGADO!
E nós, olhando o rio?

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[i] José Saramago, “A Caverna”(2000)
[ii] Artur da Costa e Silva (1899/1969), 27º Presidente do Brasil e 2º do período da Ditadura Militar, governou o Brasil entre 15 de Março de 1967 e 31 de Agosto 1969
[iii] Referência a um pensamento de Bertolt Brecht, “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
[iv] Rua do Comércio, nº148: a sede do Banco de Portugal, em Lisboa
[v] Expressão utilizada por Marcello Caetano, o “fascista renovador”, Portugal 1969. Dizia-se, ao tempo, que viria uma “Primavera Marcelista

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