07 junho 2020

É DIFÍCIL DESINSTALAR O MEDO





As primeiras reacções hostis às manifestações contra o racismo e a violência policial nos EUA, em diversas cidades do nosso País, vindas de quadrantes diversos, contém argumentos demasiado leves, para serem considerados pífios, “muita gente junta”, “não respeito pela distância social”, junto com outros, que, nas redes sociais, ganham foros da costumeira “CMTVização”, “incrível”, “inacreditável”, “depois queixem-se”, ilustram até agora as posições daqueles que misturando tudo (e mais alguma coisa) querem sobretudo desvalorizar um verdadeiro movimento de repulsa e repúdio pela violência policial e contra o medo.
Gente que vai ao ponto de escrever, "A demência e irresponsabilidade de um povo à vista de toda a gente!", nem entende a profunda contradição que encerra, por estar mais interessada em semear a intolerância e o ódio. A propósito desta frase, o meu Amigo Jorge Campos (Jornalista), fala no “povo bom” do “toda a gente” e coloca-se (tal como eu) do lado do “povo mau”, aquele que, nas palavras dele entende “...que o racismo é inaceitável e o silêncio sobre a demência que lhe é inerente uma irresponsabilidade.”

Está por demais claro o avesso de certas pessoas a manifestações. Expressões “modernas”, como, “manifestações, numa altura destas?”, “tem algum jeito ir para a rua?”, “se soubessem, a figura triste que fazem...”, são a imagem distorcida da liberdade de expressão, aqui sob a forma de um certo desprezo burguês pela rua, que acham ainda o lugar das massas malcheirosas dos que trabalham. Conotadas ou nem por isso, essas tiradas mais ou menos reaccionárias, fazem as delícias dos tiranetes disfarçados, que não podem (nem devem) mostrar ainda a sua verdadeira fase. Ou a transição definitiva para tiranos, mesmo que de papel e caneta. 
É possível encontrar facilmente os indignados de hoje. Não compreendem verdadeiramente a situação? Não entendem o verdadeiro alcance do perigo racista, quer seja nos EUA, quer seja aqui, no País à beira-mar plantado e “pacífico”? Não creio, de todo. 
Vou mais pela tese, não querem ver. 
E porque não querem ver? Mesmo que me socorresse do Niemöller [1], "Primeiro levaram os socialistas e eu não protestei porque eu não era socialista. Depois levaram os sindicalistas, e eu não protestei porque não era sindicalista. Depois vieram pelos judeus, e eu não protestei porque não era judeu. Então eles vieram por mim, e já não havia ninguém para protestar por mim.", não conseguiria “impressionar” os detractores de hoje. Que fizeram o mesmo em relação ao 1º de Maio. Porque para eles, o que conta é o formalismo e a encenação do medo instituído, não percebendo (aí sim) que um dia tudo contra eles se pode voltar.
E sobretudo que se calaram, como ratos, aquando da violência policial, aqui bem dentro de portas, contra negros e ciganos (...). 

Assim, é bom ver a quantidade de jovens na rua, nas manifestações. A sua reacção contra uma ordem social que é adversa, quer às suas próprias aspirações de uma sociedade que lhes parece fechar todas as portas, quer ao cerceamento da liberdade conquistada. Que para eles, é um dado adquirido, porque nasceram depois da data da Libertação do jugo fascista. Mesmo que tal não seja visível, começa aqui (ou pode começar) uma consciencialização da violência do capitalismo. Porque é afinal disso que se trata, em último grau. 

E já agora, para que conste, o mesmo (a mesma violência) se passou na Palestina, uma denúncia necessária do maratonista palestino Mohammad Alqadi, que publicou na sua conta no Twitter, quatro fotografias de soldados israelitas imobilizando palestinos com o joelho sobre o pescoço ou sobre a cabeça e com este comentário, “É extraordinário como o mesmo acontece na Palestina, mas o mundo opta por ignorá-lo” [2].

E será ainda bom lembrar a reacção do procurador-geral de Minnesota, Keith Ellison, que declarou num comunicado: “A sua vida (George Floyd ) era importante. Tinha valor. Vamos procurar justiça e havemos de encontrá-la”. E, em declarações posteriores, acrescentou, “O que temos pela frente não é um caso isolado mas um problema de sistema. E tanto a investigação como a acusação estão a ter isso em consideração com o objectivo de chegar às últimas consequências. Estou certo de que o fazem com competência. Mas isso não porá fim ao assunto. O despedimento dos agentes não acaba com o assunto. O processo penal já iniciado não lhe põe fim. O processo de direitos civis não lhe põe fim. Necessitamos de uma mudança de sistema profunda e permanente”[3].

Na realidade não é fácil desinstalar o medo. A instalação foi muito bem executada, pelos melhores técnicos, alguns deles dentro da elite bem-pensante da “transição digital” e das “reformas estruturais”. Todas oriundas quiçá de uma velada, mas atenta sempre, supremacia branca e claro, do “america first”. 
A luta contra este sistema que oprime e mata, terá de ser completamente desconfiada.
Porque é da nossa vida que se trata!


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[1] Embora habitualmente atribuída a Brecht, esta conhecida asserção é realmente da autoria do 
teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984)
[3] Fonte: “O Lado Oculto”, in: https://www.oladooculto.com/noticias.php?id=797       




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