01 junho 2020

O FRUGAL DELÍRIO DOS PROFETAS


Muito embora o debate seja sobre a eventualidade de determinadas subvenções e fundos serem avançados pela União Europeia, no combate à pandemia, o certo é que um outro debate lhe sucede ou é resultado dele. 
Tanto faz. 
O outro debate é produzido (ou reactado) pela crença (ou ausência dela) no futuro da Europa tal como ela está actualmente desenhada, ou seja, da “união” entre 27 Estados, “atados” a uma moeda única, que lhes retira soberania e capacidade de decisão, monetária e orçamental.
Ou seja, um debate inquinado, uma vez que a oposição ao modelo Europeu, hoje e agora, é memorizada e, por vezes, ridicularizada. Iludida por parte de agentes externos à questão, que jogam a sua influência na “capacidade de influenciar” (a nota é forçada, precisamente no termo) as decisões soberanas dos Estados.
O que acontece na realidade é que está a ser devidamente "montado" um verdadeiro circo mediático, à volta das propostas até agora conhecidas da UE. Alguns comentadores do sistema, rejubilam com elas, por vezes até, de forma patética. Veja-se o caso da Teresa de Sousa, que, no Público da passada 6ªfeira, elogia Merkel e o "antigo entendimento com Costa" (confesso que desconhecia, mas já nada me admira...) e elogia ainda o papel dos EUA e ainda diz que "...a capacidade de reacção dos Governos e das instituições europeias afasta o risco imediato do recrudescimento das forças políticas extremistas e populistas". Esta última afirmação é de uma estreiteza de vistas fantástica e só demonstra aquilo que quero dizer: montar o circo, para depois culpar os tais quatro "frugais", pelos vistos os maus da fita.

Frugalidade vs. Manipulação
Para o Dicionário da Porto Editora, “frugalidade” é um “nome feminino”, com significados que vão desde a “moderação na alimentação”, à “simplicidade de costumes”, passando pelas inevitáveis, “temperança” e “sobriedade”. 
Quanto a sinónimos, encontramos, “abstinência”, “moderação”, “parcimónia”, “simplicidade “e “temperança”.
Abstendo-me (por causa da “abstinência”) de comentários, que seriam, neste caso, perfeitamente escusados, lembro o “cheirinho feudal” que Susana Peralta[i] sugere, a propósito das afirmações do PR,  do apoio para que se façam doações para o banco alimentar, particularmente quando nos vem dizer, “...que espécie de sociedade é esta que permite pessoas que podem ficar com fome durante mais de 1 ano, se contenta com oferecer uns pacotes de arroz para as campanhas do dito banco?” 
Neste caso e em casos semelhantes, o Estado parece esquecer-se das suas obrigações sociais, permitindo que arrivistas de duvidosa proveniência e postura social, sejam o verdadeiro centro das atenções e da publicidade. Não interessa a pobreza, a não ser para fazer ela a lamentação assistencialista, pérfida imagem das sociedades actuais. 
Curioso encontrar enormes semelhanças entre os sinónimos do Dicionário e as posições sóbrias, moderadas e com grande parcimónia, de determinados dirigentes, comentadores e politólogos, que antevêem nesta crise e nas medidas propostas pela EU, os maiores elogios e esperanças. Acima de tudo, esperança, que os 2,4 mil milhões, venham salvar esta europa. Onde uns vêem a continuidade do fracasso das políticas “unionistas”, Rui Tavares vê a salvação e, utilizando uma expressão que lhe é muito querida, termina a sua crónica[ii], com um épico “É tempo de avançar para a democracia europeia”.

É na realidade o delírio...
Apesar de todos os cuidados e moderação que tentemos utilizar, imitando quiçá os “frugais”, o quadro apresentado pela EU, não é realista, nem sério. De facto, a verba atrás referida não é senão um somatório feito à pressa, de subvenções previstas, de empréstimos equacionados e ainda de verbas que haviam já sido apresentadas para o futuro quadro financeiro 2021/2027. Mais, o que a EU não refere (e é verdade), é quanto já desviou das verbas da chamada “coesão”, para as aventuras guerreiras da NATO, completamente ao arrepio da vontade dos Estados, que nem sequer se pronunciam pelos seus cidadãos.
O delírio pelos milhares de milhões é evidente, até (aliás começa aí...) no PM português, quando se sabe que está tudo dependente da aprovação em Conselho Europeu, onde é obrigatória a unanimidade. Aí, os quatro “frugais”, podem até ser mais, sem qualquer agoiro.
São profetas, não de uma desgraça, mas portadores de uma mentira enorme sobre as responsabilidades sociais. Porque não pode existir um plano de combate, sem uma análise estruturada das razões que nos levaram aqui, os seja, do volume imenso da dívida de cada País e da sua progressiva sujeição à dominação do capital financeiro, do mercado livre que originou a globalização que temos, da tremenda injustiça que representa uma moeda única que serve apenas para proteger a economia alemã. 
E quem nos quer levar nesse delírio irresponsável, acaba por ser conivente com a mentira e com a dominação. Sempre.

Solidariedade para quem?
Saibamos interpretar o verdadeiro significado do conceito. E saibamos ainda estender esse conceito à economia, para tentar engendrar políticas sérias e coerentes, que consigam erradicar a pobreza, conforme está estabelecido nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. 
Nada disto, porém, será possível, enquanto soubermos, por exemplo, que 90% das substâncias activas dos produtos farmacêuticos, são produzidos apenas em 2 países.  
Também nada será conseguido, enquanto as políticas securitárias forem a resposta às crises sanitárias. A situação será sempre em desfavor de quem tem menos hipótese de sobreviver, num mundo em que era suposto viver. 
Será possível pedir alguma parcimónia” a esta gente?




[i] Artigo “Jamaica, Azambuja, Banco Alimentar: os pobres da covid-19 e a nossa hipocrisia”, Jornal Público de 29 Maio 2020
[ii] Artigo “Então e esse fim da União Europeia”, Jornal Público de 29 Maio 2020


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