20 setembro 2020

 A LESBOLÂNDIA

 

...somos o tempo em que vivemos, um tempo de que não podemos nos ausentar. Temos uma existência própria, e não estamos mais dispostos a permanecer imaginários.” 

Alberto Manguel, 2011

 

Lesbos é o nome de uma ilha grega, no nordeste do mar Egeu. Diz-se a terceira maior ilha grega e a sétima maior do Mediterrâneo, com uma área superior a mil e quinhentos quilómetros quadrados. O nome da ilha é homenagem a Lesbo, que lá se exilou, tendo casado com Metimna, filha de Macareu, o rei local. Lesbo torna-se então o primeiro rei eólio da ilha. Do nome da ilha deriva a palavra lésbica. A história conta que Safo (século VII a.C.), a maior poetisa da literatura grega, teria escrito poemas apaixonados, dirigidos à filha ou às suas companheiras de forma terna e amorosa, poesia de conteúdo erótico, que seria censurada pelos copistas medievais, ligados na sua maioria à Igreja Católica, daí originando a lenda que existiriam relações homossexuais em Lesbos.

 

Hoje é aqui, é Moria

A história antiga é, porém, bem mais terna e benévola que a actual. Na realidade, a ilha de Lesbos é, desde 2017, o maior campo de refugiados da Europa. Dá pelo nome de Moria e, a 9 de Setembro, entra em colapso devido a um incêndio de grandes dimensões. Neste campo, com capacidade para 3 mil pessoas, viviam cerca de 13 mil (!), em condições precárias, num espaço sobrelotado. O campo estava em confinamento, depois de ter sido detectado o primeiro caso de covid-19. A activista portuguesa pelos Direitos Humanos Dulce Machado classifica Moria como o “inferno na Terra, um cenário de guerra, de sofrimento, de dor”. Fala nas tendas, contentores e casas de banho, partilhadas por homens, mulheres, crianças e em condições inimagináveis. Fala ainda na falta de higiene, de cuidados sanitários, na fome e nas doenças e nas violações que, segundo ela, fazem parte do quotidiano. 

 

Quem denuncia?

Quem fala nisto? Um reduzido número de activistas, em voluntariado, vão (como a referida portuguesa) dando conta de uma realidade que a Europa enfrenta, sem que se veja resposta condigna, da parte dos responsáveis, nem dos países em questão, nem sequer da designada “união europeia”. 

A propósito, e sobre os designados refugiados esquecidos de Paris”, espalhados pelo nordeste da cidade e pelo bairro de Saint-Denis, o site jornalístico DW (Deutsche Welle) dizia, em Dezembro de 2019, que, ...centenas de migrantes vivem em acampamentos improvisados na capital francesa.

Convivemos com esta realidade chocante há quanto tempo? 

De facto, desde 2015, que a vergonha dos “campos” alastra e se multiplica.  

Aceitamos esta realidade (?), lamentando o infortúnio, indigno e indecente. 

A chamada “união” irá muito provavelmente despejar uns quantos milhões, para que as vozes se calem, para que as criancinhas tenham, durantes uns dias, o pão e a água que lhes faltam. Porque dinheiro é coisa que não (lhes) falta, injecta-se hoje algum, para que amanhã tudo fique na mesma, uma farsa enorme, uma iniquidade. 

Nada que perturbe os eurocratas, essa espécie asquerosa, para quem a política é sempre veludo. Veja-se, por exemplo, a posição da Comissão Europeia, ao aconselhar, em Março passado, “cautela” perante as últimas imagens da violência na fronteira entre a Grécia e a Turquia. Bruxelas recusa-se a censurar o comportamento das autoridades gregas, e a sua política de dissuasão dos migrantes que procuram aceder ao território europeu. 

E recusar-se-á sempre, como no passado, a tomar uma posição de força contra a guerra que ocasiona tudo isto.

 

É a Guerra, estúpido!

Porque é na realidade disso que se trata. Enquanto existir a NATO, essa excrescência belicista, ao serviço dos EUA e dos seus designados “aliados”, existirá sempre guerra, porque é a essência desta que alimenta a sua existência. Isso acrescido dos interesses profundos relacionados com a indústria do armamento, que justifica os grandes negócios e as grandes fortunas.  

É a guerra que fabrica milhares e milhões de mulheres, homens e crianças, que fogem dela, com o medo e fome no corpo, na esperança vã de poderem encontrar um lar, uma cama, alimento que se preze, para si e para os seus. 

Nasce, aos nossos olhos, neste século horrendo, um novo território, a “Lesbolândia”, que é hoje um imenso império, onde reina a iniquidade, a desigualdade e a exclusão. Nela se instala a indiferença, no medo da denúncia, na limpeza das consciências, porque agora é mesmo assim, em tudo que diz respeito às políticas desta “união”, um nome que deveria ser impronunciável, tal a ironia.

 

Nela se canta a canção, com ela denunciamos, nela revemos uma realidade escondida, entretanto sempre presente nas nossas mentes:

Há um fogo enorme no jardim da guerra 

E os homens semeiam fagulhas na terra 

Os homens passeiam co´os pés no carvão 

que os Deuses acendem luzindo um tição

P´ra apagar o fogo vêm embaixadores 

trazendo no peito água e extintores 

Extinguem as vidas dos que caiem na rede 

e dão água aos mortos que já não têm sede

 

Ao circo da guerra chegam piromagos 

abrem grande a boca quando são bem pagos 

soltam labaredas pela boca cariada 

fogo que não arde nem queima nem nada

 

Senhores importantes fazem piqueniques 

churrascam o frango no ardor dos despiques 

Engolem sangria dos sangues fanados 

E enxugam os beiços na pele dos queimados

 

É guerra de trapos no pulmão que cessa 

do óleo cansado que arde depressa 

Os homens maciços cavam-se por dentro 

e o fogo penetra, vai directo ao centro

Cantiga do Fogo e da Guerra”, José Mário Branco/Sérgio Godinho, 1971

 

 


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