02 novembro 2020

 O PERIGO PANDÉMICO E AUSTERITÁRIO        

 

Não se pode ignorar que o perigo de contágio traz consigo a epidemia paralela de medidas repressivas e contraditórias.”

É com estas palavras que a professora de filosofia Donatella di Cesare define o actual estado provocado pela pandemia, na obra que acaba de publicar[i].

E, numa altura em que seria normal exigir que governos e estados tomassem conta da situação com objectivo de erradicar o vírus, o que se verifica é precisamente o contrário.

Por força da violência capitalista, que tudo subordina ao défice e à dívida, o que se assiste é a uma tentativa de responsabilizar o cidadão, tentando passar uma mensagem ultra-securitária, que tem tanto de perigosa, como de enganosa: um perigo de saúde pública, uma mentira (ainda que, em alguns casos, piedosa), que resulta, tal como em tempos resultou, a responsabilização dos cidadãos que supostamente viviam acima das suas possibilidades. 

 

O porquê das medidas avulsas e contraditórias

Decreta-se a obrigatoriedade de circulação apenas para os casos de necessidade absoluta, trabalho e educação, indústrias, comércio e outros serviços. Circula-se na rua durante todo o dia e depois vamos para casa, possivelmente contagiar a família, uma caricatura da realidade, que não anda muito longe da realidade. O absurdo é que, já antes da pandemia, era mais ou menos assim, as cidades ficam quase desertas à noite, o que faz com que esta “recomendação” configure simplesmente uma certa dose de autoritarismo, insensato e potencialmente transformável em hábito de poder. 

 

Esquecer o mais importante 

Regista-se o contrassenso. A responsabilidade de combate à pandemia é do Estado e não do cidadão. No caso do nosso País, é do SNS, um sistema universal, que deveria ser o suporte essencial da preservação da saúde pública. É do Estado a responsabilidade primeira de dotar o sistema dos meios possíveis e imaginários, respeitar os profissionais e o seu desempenho. Essa deveria ser a primeira “preocupação” do orçamento de estado para 2021, quer na vertente do aumento significativo dos meios, quer no que reporta ao pagamento adequado e justo aos profissionais. Sabe-se, por exemplo, quão ridículo e desrespeitoso é oferecer contratos de 4 meses aos médicos, que tanta falta fazem agora no SNS. Este é o maior erro do Governo da República, que assim não cumpre os dois critérios que abaixo são enunciados: nem gere bem a coisa pública, nem cuida bem dos cidadãos.

 

A política e o senso comum.

Exige-se dos políticos uma elevada dose de bom senso, muito embora o exercício da política nada tenha a ver com o senso comum. Aquele exercício deverá ser orientado fundamentalmente para a gestão do Estado e para cuidar dos cidadãos. Nada mais errado que apelar constante e frequentemente ao designado “interesse nacional”, uma ilusão que apenas existe na arrogância da Direita, que se sente intérprete e detentora do mesmo. A gestão da coisa pública e o necessário cuidado dos cidadãos, tem, obviamente, uma interpretação diversa, na Direita e na Esquerda, entre estado mínimo e estado social, entre a defesa dos interesses dos detentores do capital e a defesa dos interesses dos trabalhadores, numa dialética constante e permanente, que determina e é determinada, pela conflitualidade social e pela necessária negociação e lutas sociais.

 

É fácil lidar com uma pandemia como esta?

De todo. Hoje, quem governa tem que se superar, principalmente no sentido do cuidado que é devido aos cidadãos. Ninguém é isento de falhas e de erros. Contudo, qualquer governo tem hoje à sua disposição uma bateria imensa de assessores, funcionários especialistas em diversas matérias, que, pagos para tal, deveriam fazer o seu papel, estudando em profundidade as medidas que são propostas. Acontece que, desde o início da pandemia se tem constatado que algumas das medidas propostas, não teriam eventualmente sido objecto do necessário estudo e devido aprofundamento. Não sendo fácil governar sob os efeitos de uma pandemia, mais difícil se torna fazê-lo, sem os cuidados devidos e sem a validação de determinadas propostas. Um exemplo muito significativo é a medida restritiva para a realização de feiras e mercados, decretada de forma impositiva e, horas depois, corrigida e alterada.

 

O próximo é contágio – o contágio é próximo

Este é um dos “avisos” feitos pela Autora, querendo alertar para a o risco da prisão domiciliária, uma das formas de instalação do medo e da ausência dos afectos, das consequências psicológicas do confinamento, do isolamento como forma de tratamento preferencial. Da imposição do teletrabalho, que traz consigo a perda sucessiva de direitos dos trabalhadores, da contestação paulatinamente, o Estado, no dizer de António Luís Catarino, “...imunizou-se, imunizando os seus cidadãos contra o Outro, o estranho, que podem ser o estrangeiro, o turista ou migrante, as minorias sexuais, os velhos, os sem-abrigo...”[ii]

 

O erro e a sua cura

Há sempre cura para o erro. Contudo, a persistência no erro, não é um bom sinal. Há sempre tempo de arrepiar caminho, no caso vertente de Portugal no final do ano 2020, parece ser mais fácil a repetição dos erros do passado que a criação de condições para emendar a mão e ter a coragem de praticar uma política audaz, sem medo das possíveis imposições europeias tão gratas a determinados sectores partidários. A questão é que o futuro está aí, já amanhã, ou depois de amanhã. O sentimento crescente de insatisfação, a recusa (o medo?) da intervenção cidadã, cria um caldo terrível de rejeição das instituições e da opção pela facilidade de adesão a sentimentos populistas, um perigo imenso que tanta gente vem alertando. Em vez de parar para pensar e decidir mudar de rumo, os responsáveis parece que preferem fechar-se num mutismo inconcebível, ou atacar aqueles que defendem alternativas diferentes. 

Não é seguramente a melhor cura para o erro. 


[i] “Vírus Soberano? A Asfixia Capitalista”, tradução de António Guerreiro, Edições 70, Julho 2020

[ii] Artigo de Setembro 2020, acessível em: http://derivadaspalavras.blogspot.com/2020/       


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