01 dezembro 2020

 O HOMEM DO NAVIO-NAÇÃO

 














Nunca mais irá reflectir sobre o seu País, seria precisamente no dia da Restauração que se lembraria de morrer, ele que via o além como uma projecção do aquém, com imagens idênticas. A morte que o veio literalmente buscar, tal como ele dizia, “não vale a pena pensar na morte, porque a morte vem ter connosco.”[i]

 

Vivemos hoje, dizia, “...tempos melhores do que os que conhecemos no nosso passado recente, e só quem não passou por eles pode desvalorizar esta evolução. Não podemos ser tão pessimistas, talvez tenhamos de reconhecer que os intelectuais, e eu também, sofrem por vezes de um excesso de espírito sonhador, até com uma carga utópica. Depois desiludimo-nos porque a realidade não desaparece e está onde está para nos tirar as ilusões.[ii]

Sempre e agora, as ilusões.

 

Que bem falava e escrevia sobre o seu Portugal, de que esteve afastado, por exílio, durante tantos anos, mas que pensava e descrevia: “Mas a classe historicamente privilegiada é herdeira de uma tradição guerreira de não-trabalho e parasitária dessa atroz e maciça «morte de trabalho» dos outros. Não trabalhar foi sempre, em Portugal, sinal de nobreza e quando, como na Europa futuramente protestante, o trabalho se converte por sua vez em sinal de eleição, nós descobrimos colectivamente a maneira de refinar uma herança ancestral transferindo para o preto essa penosa obrigação. É mesmo essa a autêntica essência dos Descobrimentos, o resto, embora imenso, são adjacências. Seria de uma provocação sem alcance exaltar o trabalho em si ou a ética do trabalho (dos outros), independentemente do contexto social onde se insere, tal como a ideologia puritana do liberalismo a cultivou. Colectiva e individualmente, os Portugueses habituaram-se a um estatuto de privilégio sem relação alguma com a capacidade de trabalho e inovação que o possa justificar, não porque não disponham de qualidades de inteligência ou habilidade técnica análoga à de outra gente por esse mundo, mas porque durante séculos estiveram inseridos numa estrutura em que não só o privilégio não tinha relação alguma com o mundo do trabalho, mas era a consagração do afastamento dele.”[iii]

 

Disse, no distante ano de 1997, que os portugueses se haviam perdido “...no mundo e refluíram ao seu território de origem, tantas vezes de modo trágico e sem glória, nação-navio que regressa ao cais[iv]

 

Julgava-se, “...em dívida para com a humanidade inteira”, ele que fez tudo pela Humanidade e pelo Humanismo, ao simplesmente existir. Ele que pensou, como poucos, o seu País e a sua gente, a este Homem se devolve o que ele próprio escreveu um dia: 

CUMPRIU-SE O MAR E O IMPÉRIO SE DESFEZ. SENHOR FALTA CUMPRIR-SE PORTUGAL.”[v]

 



[i] Fonte: TSF, “Pessoal e Transmissível”, de Carlos Vaz Marques, Maio 2003

[ii] Fonte: Jornal Público, entrevista de J. M. Fernandes (Público) e Graça Franco (Rádio Renascença), Outubro 2008

[iii] In: “O Labirinto da Saudade”, Eduardo Lourenço, Pub. Dom Quixote, 1978, pág. 130

[iv] In: “Nós Como Futuro”, Eduardo Lourenço, Ed. Assírio & Alvim, 1997, pág. 28

[v] Idem, ibidem, pág. 2


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