25 abril 2021

 






Era um dia escuro e húmido. Arrancado da cama (uma estória já contada...), com a Revolução na rua, pensei de imediato no golpe das Caldas, apenas um mês antes. Havia qualquer coisa no ar, o que não havia era certeza alguma. Esperávamos somente que o fascismo caísse, força da nossa luta, força da enorme pressão social dos últimos 4 ou 5 anos, uma insustentável situação, de que as conversas em família do marcelo, eram o sinal de fragilidade aterradora de um regime podre, que vinha de tantos anos de terror, pobreza e miséria, aqui e nas colónias. Uma guerra que seria o meu destino “natural”, para onde iria seguramente, uma vez perdido o direito ao adiamento, circunstância que levaria a equacionar, no início desse ano, o abandono do País. Não sabíamos, portanto, não havia respostas. Saímos para a rua, esperando que esta nos desse algumas, que as possíveis movimentações populares nos conseguissem explicar o que se estava a passar. Não ouvíamos logo a rádio, apesar de bem me lembrar (depois) de ter ouvido, religiosamente como sempre, o “Limite”, do Leite de Vasconcelos, na Renascença, onde passaria o “Grândola”, pouco depois da meia-noite. Contudo, nunca me passaria pela cabeça, estar a ouvir a segunda senha do 25 de Abril, praticamente meia-hora depois da primeira (que não ouvi), nos Emissores Associados de Lisboa, justamente o “E Depois do Adeus”. A rua, entretanto, não nos dava respostas, a não ser uma série de informações contraditórias, que a coisa poderia dar para o nosso lado, mas também para um outro lado negro, o dos fundamentalistas do regime. Foram os Amigos, os colegas mais velhos da faculdade, para onde seguimos, já no final da manhã, a ajudar, com aquela cumplicidade anti-fascista, a que nos situássemos, há sempre alguém que consegue ter alguma informação que nos anime, um que tinha ouvido o 1º Comunicado do MFA, pelas 4 da manhã, “Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais de devem conservar com a máxima calma...”. Soubemos depois, ao contrário do apelo, do imenso levantamento popular, na Cidade, que bem nos mostram hoje os arquivos da memória, de que relevo hoje, o nosso grande Capitão Salgueiro Maia (com quem haveria de privar, 1 ano depois, na minha tropa, na Escola Prática de Cavalaria) a dar voz de prisão aos ministros que acabariam de fugir, borrados de medo, do Terreiro do Paço, ou a exigir a rendição incondicional do chefe do governo, no Quartel do Carmo.

 

Nós que vínhamos de Coimbra em 69, conhecíamos bem a rua, não tínhamos medo de nada, mesmo com medo de quase tudo. Vimos e participámos da Luta:

Eu vi este povo a lutar

Para a sua exploração acabar

Sete rios de multidão

Que levaram a história na mão...”

A recordação desse dia, leva-me à Praça da República e aos Aliados, já durante a tarde e ao episódio da troca de tiros, com a PSP, os resquícios da repressão, a marca do regime, já agonizante. Ouvimos agora a rádio, era a voz da Luísa Basto, alto aí, a cena parece ser outra, aquela voz é das nossas, ajuda a dissipar as dúvidas. Cerramos fileiras, gritamos bem alto, era a luta de tantos anos e tantas vidas, a exigir a Liberdade, o fim da PIDE, a libertação dos presos políticos, era o prenúncio da Liberdade a sério, era o erguer do punho cerrado, contra a exploração e a opressão.

Recordo então o Zeca, percebo agora a senha:

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, oh cidade...”

 

Era uma 5ªfeira, o sol tardava a aparecer, num dia tão belo, faltava a sua luz, a sua cor. Mas sobrava a força para ajudar a queda de um regime, que nos havia roubado a juventude, mas nunca a esperança, nunca o sorriso da Vida, era o cravo do “Portugal Ressuscitado”:

Depois da fome, da guerra

Da prisão e da tortura

Vi abrir-se a minha terra

Como um cravo de ternura...”

 

São hoje 47 anos do Abril 74, curiosa imagem, hoje possível, porque fomos capazes de consolidar uma nova República, apesar de todos os todos, apesar da imperfeição, apesar da flor murcha, substituída pelo cravo e papel, ou pelo cravo digital, impensável à época. Apesar da perda progressiva da soberania, em flagrante desrespeito pela Constituição, a República celebra a Liberdade, ocupa e desce a Avenida, trazendo a Luta para fora de portas, fazendo greve por direitos, levantado a voz contra injustiças. Pesem embora todos os contratempos e arbitrariedades, há sempre quem esteja disposto a dar a cara e ir à luta e que não tenha medo, o medo que “eles” querem que tenhamos.

Havia quem dissesse, ao tempo: 

“...não hei-de morrer sem saber

qual a cor da liberdade.”

Que o queriam “cego e mudo”, hoje bem mais brando, apenas “calado e consensual”.

Mas como afinal: 

Foi então que Abril abriu

as portas da claridade

e a nossa gente invadiu

a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra 

na madrugada serena 

um poeta que cantava 

o povo é quem mais ordena...

(...)

Agora que já floriu 

a esperança na nossa terra 

as portas que Abril abriu 

nunca mais ninguém as cerra.”

 

Havemos sempre de encontrar, em qualquer cidade, uma qualquer parede branca, para escrever, com vontade e com garra:

 

25 SEMPRE, A LUTA CONTINUA!

 

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Citações dos autores, pela ordem em que entram: José Mário Branco, José Carlos Ary dos Santos, Fernando Tordo, Jorge de Sena e Sérgio Godinho


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