03 outubro 2021

UMA LINGUAGEM DE “ELEIÇÃO”

















Se falamos em noite eleitoral, falamos do que sabemos, de resultados, reacções, concessões, consequências, lições e ilações, coligações, acordos e desacordos, avenças e desavenças, suposições e composições, relatos e declarações, contagem e recontagem. E mais, porque assim se passa, não no terreno, mas na secretaria, de sondagens, antes e à boca da urna. Falamos de discurso e retórica.

Falamos de política e de cidadania.

Somos Cidadãos. Mesmo que não só para o voto, sempre para a participação, quando ela se abre e depressa se esgota.

Falamos com determinação.

Por vezes, com o coração, nem sempre com a razão, quando mesmo sem razão.

 

ANTES DA NOITE

Tudo se diz e se reclama. Tanta coisa se não diz e se proclama. As sondagens, ditas seguras e com margens de erro irrelevantes, condicionam (e de que maneira) o voto de uma percentagem significativa do dito eleitorado, particularmente aquele que acredita existir a alternância, boa (dizem) para a democracia. Pobre democracia, que se revê em sondagens e outras formas esquisitas de abordagem do votante, cada vez mais indefeso, perante as subtis formas de organização administrativa da democracia.

 

A NOITE

É do rescaldo do que acontece que a noite se alimenta.

Parece.

E assim, se dilui a vitória de uma direita que, apesar de não disfarçar a nunca a sua verdadeira postura, vai fazendo o seu trabalho, em prol da “alternância”. O candidato que nunca pensou em ganhar, vai ter agora a árdua tarefa de lutar contra uma maioria hostil.     
Será assim de facto, em Lisboa?               
Que será a posição do Partido Socialista, que sempre teve em Medina uma figura sem crisma e sem prestígio? E, para além disso, sempre com arrogância, característica de um líder fraco e desgastado por contradições insanáveis.     
Será por outro lado a derrota da Esquerda? Também aqui a dúvida se parece instalar, sobretudo para quem considera que existe em Lisboa uma “maioria de Esquerda”. Não creio que tal corresponda à realidade, uma vez que, para isso ser verdade, teria de existir uma coligação ou um acordo, subscrito e assinado pelos actores políticos, organizados ou não nos partidos do lado esquerdo do espectro político.     
A questão central é mesmo esta.

Na actualidade, não se pode ser considerado de Esquerda, um partido político que no exercício do poder pratica o mesmo tipo de medidas da Direita, ainda que disfarçadas. Quem melhor que o Partido Socialista ansiaria para a capital do País, um autêntico centro de turismo e de negócios? Que medidas foram tomadas, por exemplo, para defender a habitação social, apenas para citar a mais importante marca da Esquerda, na defesa do direito à habitação?

Em Lisboa, como no Porto, mandou quase sempre uma administração burocrática, em detrimento da verdadeira democracia participativa. 

A noite acabava de confirmar a dita resiliência, a melhor forma de conformação.

 

 

E DEPOIS DA NOITE

A maior parte das análises e comentários, dos mais diversos quadrantes, parece convergir ao dizer a mesma coisa, mesmo que de forma diferente, analisando o número de câmaras o número de votantes, a presidência da associação de municípios, concluindo da vitória, retumbante em algumas posições, do Partido Socialista.                 
Decerto que, continuando na mesma linha de raciocínio, venham afirmar e teorizar sobre a maioria de esquerda, sociológica e morfologicamente instalada no País, oscilando para um lado e para o para o outro lado, consoante o apoio que Partido Socialista vai conseguindo, em torno de matérias e conteúdos susceptíveis do agrado quer do Partido Comunista Português, do Partido Ecologista Os Verdes, do Bloco de Esquerda, sempre em separado, creditando em cada uma das citadas formações partidárias, o mérito de cada medida.
Se as lições que os resultados encerram pudessem ser úteis, tal como aliás em outros actos eleitorais, apontariam decerto para duas conclusões, que parecem  claras: (1) O Partido Socialista não é um partido de Esquerda, muito embora tenha no seu seio muita gente de Esquerda; (2)       O Partido Socialista só será capaz de ensaiar políticas de esquerda, desde que exista uma solução de poder que agrupe, os partidos atrás referidos, bem como outras formações partidárias da Esquerda e ainda outras organizações políticas da sociedade que se reclamam dos valores relevantes e necessários à libertação do jugo do capital financeiro e do capitalismo neo-liberal.

E a validade desta tese confere legitimidade aos seus representantes para assumir, quer a nível local e regional, quer a nível nacional, a luta para travar o propalado (e por vezes incentivado) avanço da extrema-direita em Portugal. Note-se que não é apenas do Chega que vem o perigo extremista, reaccionário e manifestamente “liberal”.  Ele está no que resta do CDS, na IL, nas franjas do PAN e, curiosamente, no próprio PSD, cujo líder tem um discurso e uma retórica populista e perigosa, que o aproxima da extrema-direita.

 

UMA VEZ MAIS, A LINGUAGEM

Facilmente poderíamos hoje assimilar o que George Orwell escreveu em 1946, num ensaio notável, “A Política e a Língua Inglesa”.  Uma grande parte dos actores partidários, dirigentes e outros funcionários, deveriam atentar, sobre o uso de uma certa linguagem, corrompida pelo pensamento, e por um pensamento corrompido pela linguagem. A sugestão de Orwell parece um aviso a todos os que querem fazer da política um acto exangue: “Talvez seja preferível adiar o mais possível o uso de palavras, tratando de esclarecer em primeiro lugar as nossas ideias por meio de imagens e sensações”.

Depois da Noite, continuam os discursos, constituídos em grande parte por eufemismos e formas vagas, convidando e anunciando a “alternância”. 

Para os funcionários e burocratas, ela oscila entre os dois partidos do centrão. Para os cidadãos, alternância a sério é uma mudança radical de políticas, promotoras de autonomia e consideração pelos seus direitos. 

Para os funcionários e burocratas, parece haver sempre um filtro que impede a luz de fazer o seu percurso natural. Os cidadãos querem ver o Sol, ainda que para tal, tenham de derrubar os filtros e as paredes que lhes tolhem o caminho.


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