17 novembro 2021

 ERA – (1)


Era à soleira da porta que espreitava as novidades. Que, diga-se de passagem, não eram rigorosamente nenhumas, tão sensaborona era a vida de então. Todavia, de quando em vez, lá aparecia alguma coisa, a tal novidade que era, mesmo sem o ser. Era a soleira da porta, contudo longe da rua, lá fora a correr.,
De certa forma era a transição entre o “fora” e o “dentro”, que devia estar em causa. Naquela aldeia do Minho de então, era tudo sempre igual, as mesmas pessoas, “bom dia menino”, algumas carregadas de passado e sem nenhum presente digno desse nome, quanto mais futuro.
Eram as poucas casas, umas três ou quatro, com a mercearia do Mota, que também tomava conta da luz eléctrica e a desligava quando estava mal disposto, pelo menos era o que se dizia. E era a casa do tio João, um pouco mais acima.
Passavam carros, muito poucos, quase todos tinham nome, o chevrolet do Dr. Magalhães, o mercedes do Sr. Santos. Mas eram as camionetes da carreira que naquela altura pontificavam, as empresas que faziam transporte, a hoteleira do Gerês, o Tecedeiro, o Marinho, o Peixoto e outro que era o Salvador, que rumava mais para Norte.
Era o rio, sim. Mais propriamente, os rios, porque eram dois e um desaguava no outro, sem qualquer cerimónia, todos os dias. E a gente gostava deles, porque era na água que repousavam todas as mágoas possíveis daqueles dias de infância. E foi naquelas águas bem frias, com quem, esbracejando, aprendemos a conviver. Havia um encanto secreto em uma das margens, na outra morava talvez a incerteza, algo que estava um pouco mais além da compreensão, havia muito para dizer sobre isto.
Havia medo? Talvez, mas era sempre disfarçado, filtrado pela excessiva protecção dos pais e do resto da família. Havia de acontecer medo naquelas situações em que se arriscava mais que o permitido, que pouco era.
Havia a senhora Rosa, uma mulher de grande saber, mas que confessava a sua nulidade, porque era criada e assim o tinham que ser aqueles a quem não era permitida qualquer valorização, ou ascensão no elevador social, uma coisa que não se sabia muito bem o que era na altura, mas que sempre ditou a sorte dos mais fracos.
Havia sol.
- Mãe, porque andam os meninos descalços?
- Assim foi e assim será, é o povo da aldeia, apenas isso.
A partir de certa altura haveria aquilo de me fazer alguma confusão, misturada com o facto de não ter autorização de brincar com eles.
O povo da aldeia.
Havia frio.
As casas, mal aquecidas, eram grandes de mais, eram enormes, era tudo grande demais. A parte mais bonita da casa, onde havia um quarto no sótão, com vista para o rio, uma imensidão de água. Tão imensa que, no Inverno, subia todas as margens possíveis e imaginárias, alojando-se tranquilamente quase ao nível das lojas, a parte mais baixa da casa que, apesar de tudo, resistiria sempre à invasão.
Era a época do ano mais bela, porque diferente e assustadora.
- Pai, porque temos medo da força da água?
(desta pergunta não lembro a resposta, apesar de o Pai ter sempre resposta para tudo).
Era a largueza de um tempo sem medida, na medida exacta do tempo que existia. Se bem me lembro, havia tempo para tudo.
O era deixaria de ser um dia, quando a natureza mandou que fosse. Entretanto, continua em nós, até que seja tempo. (...)

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