08 maio 2022

“A CATÁSTROFE IMINENTE E OS MEIOS DE A CONJURAR”  

 

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave...

Tornam-nos pequenos...

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver

Alberto Caeiro, “Eu Sou Do Tamanho Do Que Vejo”, (1925) 

 

Procurando um vago sentido de oportunidade, resgatamos o título da velha obra de Vladimir Ilyich Ulianov (1870-1924), mais conhecido por Lenine. Quando a escreveu, corria o ano 1917, a Revolução de Outubro levava meio ano e a grande preocupação era a forte probabilidade de sabotagem ao novo governo dos sovietes, em áreas determinantes, como os transportes e os circuitos de distribuição dos produtos essenciais. E se lembramos um título que fala de catástrofe, é porque estamos a assistir à catástrofe de uma guerra na Europa, sendo também uma das suas mais imediatas consequências a perda do poder de compra em países não envolvidos, particularmente grave numa sociedade tão desigual como a nossa. De facto, a catástrofe está aí. Haverá meios de a conjurar?

 

 

Mais uma falácia

Pode parecer estranho que um governo, que reconhece a quebra do poder de compra, afirme que não será uma actualização de salários que irá resolver o problema das pessoas. Mais afirma que, a haver um aumento de salários, tal iria provocar uma “espiral inflacionista”. Para piorar a situação, vem o Presidente Marcelo pedir “sacrifícios”.

O discurso neoliberal é rico em falácias. Elas têm como objectivo directo, por um lado contornar a questão e, por outro lado, dar uma imagem distorcida da realidade. A falácia não passa de uma ideia errada que se faz passar por verdadeira, para simplesmente enganar.

Esta falácia é, entretanto, venenosa. Primeiro, por ser uma falsidade, segundo porque, vindo da boca do Primeiro-Ministro, contradiz, com a maior candura, o seu discurso anterior.

 

A narrativa da guerra

Serve para tudo. Em primeiro lugar, para tentar passar a ideia de que estamos em guerra. São múltiplas e constantes as declarações que sugerem a nossa participação na guerra da Ucrânia. Em alguns casos, vão ao limite de sustentar a tese de que o apoio ao país invadido é uma forma de defender o “nosso modo de vida”. Na verdade, esta narrativa não é mais do que a defesa de uma pretensa superioridade moral da UE e dos EUA, sendo estes a potência que nas últimas décadas impôs pela força mudanças de governo em vários países e martirizou centenas de milhar de civis, em guerras ilegais, destinadas a promover os seus interesses económicos e geoestratégicos. Tudo isso em nome dos Direitos Humanos e da Democracia. Quanto às consequências económicas e sociais da guerra, será na Europa que elas se farão sentir pesadamente, e não nos EUA, como já estamos a ver com o que os media designam por inflação. 

 

Custo de vida e inflação

Com a pandemia, a produção de diversos tipos de bens e serviços que sustentam a economia global foi gravemente afectada. A redução drástica no transporte de longa distância, em particular o de contentores, muito afectado pela paralisação de portos da Ásia, fez subir os preços de vários tipos de matérias-primas e mercadorias. Apesar de alguns comentadores terem começado a falar do regresso da inflação em 2021, esta subida de preços foi amplamente considerada como temporária. Pelo menos na Europa, não era ainda inflação.

A situação agravou-se com a invasão da Ucrânia e a subsequente guerra. Esta agressão brutal, acompanhada de sanções económicas e financeiras impostas à Rússia, sobretudo pelos EUA e a UE, seguidas de retaliações por parte da Rússia, conduziram a uma escalada alarmante nos preços da electricidade, combustíveis e matérias-primas alimentares, e um forte impacto nos preços de bens indispensáveis à vida das famílias. Num estado de absoluta incerteza quanto à duração da guerra, a única coisa que podemos dizer é que este agravamento do custo de vida constitui, para muitas famílias da classe média, um risco de serem empurradas para a pobreza. Para os que já são pobres, a severidade da sua condição aumentará, podendo cair na miséria. 

Tecnicamente falando, para que haja inflação tem de ocorrer uma espiral custos-salários-preços, o que exige um outro horizonte temporal e outras condições socioeconómicas e políticas. Dado que os sindicatos estão debilitados, e as alterações neoliberais na legislação laboral desprotegeram e precarizaram o trabalho, não há condições para que esta subida de preços conduza a um aumento de salários e, portanto, à inflação. Na realidade, só em situações de pressão da procura sobre a oferta, numa economia em pleno emprego (estamos bem longe disso), ou numa crise da vertente externa da economia que leve a desvalorizações consecutivas, aumentando muito os preços dos bens importados (já não temos moeda própria), então sim, teríamos condições para a espiral que António Costa invocou a propósito do Orçamento do Estado para 2022. Mas não estamos aí; isso foi nos anos oitenta do século passado. Haverá, sim, uma degradação importante nas condições de vida das famílias – subida forte no custo de vida com salários estagnados – particularmente grave para os pobres já que as medidas anunciadas para mitigar a situação (nem se fala em anular) são escandalosamente restritivas e insuficientes. Entretanto, a produtividade do trabalho retomou o crescimento, o que significa que a parte dos salários no rendimento nacional continuará este ano a diminuir (menos 5% desde que adoptámos o euro), precisamente o contrário do que António Costa promete.

 

Há meios de conjurar a “catástrofe”?

Num país com moeda própria, e com um governo liberto das ideias da ortodoxia neoliberal, seria possível lançar um programa de apoio à classe média e aos mais desfavorecidos que poderia compensar as perdas de poder de compra, até que este impacto nos preços termine. Intervenções sobre a economia real para aumentar a produção onde haja estrangulamentos, intervenções dirigidas à estabilização dos preços com controle das margens de lucro e uma partilha equitativa dos custos por toda a sociedade, não apenas pelo trabalho, também poderiam prevenir o aparecimento da inflação. Mas não é essa a situação em que nos encontramos. 

À boleia desta crise, o governo quer reduzir rapidamente o peso da dívida no produto interno bruto gastando o menos possível como já fez durante a pandemia. Como Estado-membro da zona euro, estaremos sujeitos à política da ortodoxia neoliberal, tanto no orçamento nacional, como na política monetária da zona euro. O Banco Central Europeu (BCE), sob pressão dos mercados financeiros, pode decidir a política errada do costume: subir a taxa de juro. Ou seja, para uma subida de preços pelo lado da oferta (os custos subiram) pode promover, através do juro mais caro, uma redução da procura e um aumento do desemprego. Um absurdo. Dado que já tinha prometido reduzir as compras de dívida pública, pode ainda ir mais longe e parar completamente. Nesse caso, é mais que previsível que as taxas de juro para a emissão de nova dívida continuem a subir. Com maior despesa em juros, a Comissão virá exigir cortes na despesa e novas “reformas estruturais”. Se os membros mais moderados da administração do BCE não forem capazes de travar esta linha política, de facto podemos vir a estar confrontados com uma “catástrofe” na Europa.

 

É difícil encontrar um tom optimista para terminar este texto. Ainda assim, como a História não está escrita de antemão, está ao nosso alcance uma intervenção cívica transformadora das nossas sociedades, uma intervenção dirigida à promoção da paz, da justiça social e da solidariedade. Tenhamos presente o testemunho de Frei Bento Domingues que, numa entrevista ao jornal Público de 2 de Maio, afirma que não podemos aceitar esta “...coisa absurda de desigualdade abismal entre classes sociais”. E que, A insurreição é a condição da nossa vida. Temos de nos insurgir contra tudo o que está mal”.



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