24 maio 2022

 DO FADO E SUAS VARIAÇÕES


“.... Somos capitães, somos Albuquerques

Nós somos leões dos lobos dos mares

E na verdade o que vos dói

É que não queremos ser heróis

Fausto Bordalo Dias, “Olha O Fado”, (1982)

 

O título da canção do Fausto Bordalo Dias, escrita em 1982, não é estranho, mas entranha-se, como condição perene a um povo mergulhado na sombra dos seus heróis, coisa que parece ninguém querer ser. Parece. O fado é, por sua vez, muitas vezes sinónimo de destino, que pode ser fatal, para alguns, que nunca conseguem sair de uma condição para a qual foram destinados. O destino, porém, nem é fado, nem é sequer destino nenhum, mesmo que isso seja a vontade dos senhores desta terra e de outras. Até ver.

 

O Fado

Se é aquilo que tem que ser, ou o que acontece, independentemente da vontade humana, uma sina ou destino, o fado é, nas definições clássicas do termo, porventura uma ideia, ou até um conceito. Seja de vida, ou apenas de estilo, o fado tem algumas variações que se conhecem e que aqui se relevam, até pela significância que têm, no contexto sociológico e na conjuntura política. Porque afinal, tudo é política, mesmo a cantiga, que, como nos ensinou o saudoso Zé Mário Branco, é uma arma. Política, sim.

O fado tem uma alma que sabe escutar e fala de sentimentos profundos da alma portuguesa, assim se diz numa peça de promoção do Fado, como património imaterial da humanidade da UNESCO. Uns falam do fado como intérprete, outros como a própria condição de ser. Para o musicólogo Rui Vieira Nery, só existe referência à palavra "fado", com sentido próximo da música, em 1822, numa "espécie de guia informativo geral sobre Portugal e as suas colónias". 

Hoje o fado é, na música, uma forma muito arrojada de abordar questões do dia-a-dia. E, em sociedades fragilizadas, uma fonte de inspiração permanente. Muitos são os jovens autores e cantores que transportam na sua voz, uma nova “inspiração”. O faduncho choradinho deu lugar a novos temas, outras construções melódicas, diferente e variados acompanhamentos, que desafiam as formas tradicionais. Pena é que a política não acompanhe este novo fado e fique, em grande parte dos casos, prisioneiras do antigo “fadinho”.

 

O fado menor

Diz-se do fado que tem apenas dois acordes, muito fácil assim de tocar, quase como, por exemplo, o bom e o mau de algumas estórias. O encanto deste tipo de fado é a simplicidade do acompanhamento, sendo uma das formas de simplicidade mais glosada, quando se trata de “acompanhar” uma qualquer luta no terreno. Ao assumir-se, assim tão primariamente, como bom (ou mau), torna-se mais previsível o fim da estória. Que não da história. Seja então menor, como aquele mal que a gente escolhe, quando nada mais lhe resta. Contudo, o fado menor da Amália lá ia dizendo, “...És para meu desespero /como as nuvens que andam altas /todos os dias te espero /todos os dias me faltas”. Uma espera nada útil, convenhamos, quando por exemplo, presumimos algo de uma determinada força política, lhe damos o nosso voto e depois nada, ou muito pouco, temos em troca.

 

O fado corrido

Um fado que é bailado e saltado, como uma dança. A sua estrutura harmónica é baseada na alternância entre tónica e dominante, permitindo assim uma grande variedade de formulações melódicas. É o fado ideal para cantar ao desafio, um género musical de grande impacto nas relações sociais, uma vez que a toada parada-resposta transmite ao “diálogo” uma vida muito especial. É ao desafio que muitas vezes ganha forma a discussão política, embora nem sempre possa ter seguimento, se não devidamente enquadrada e organizada. E sabendo-se que para dançar, por exemplo o tango, são precisos dois, aqui é apenas fado, mas de qualquer forma é uma dança, com muitas variações, ou variantes. 

Corremos tantas vezes atrás do prejuízo, que o cansaço nos faz perder a força necessária, pelo menos, para resistir. Na música, o acorde dominante do primeiro grau é uma dominante primária. Na política, a ideologia dominante é, na maior parte dos casos, eivada de um primarismo de tal forma evidente, que facilmente passa e repassa, sem criar grande mossa. O pior vem depois, quando concluímos que fomos “apanhados” na partitura errada. 

 

O fado maior, o alexandrino

O fado, em modo maior. A designação “alexandrino” é uma homenagem ao poeta francês Alexandre Berné. Neste tipo de fado, o cantar antecipa-se ligeiramente à música, motivo pelo qual há vozes que não esperam pelo acompanhamento, antes pelo contrário. Normalmente poderão ser vozes que alertam, mesmo antes de terem companhia, para configurar um qualquer protesto, que pensam poder ter eco. Nem sempre, porém a coisa resulta, muitas vezes, ficamos a falar sozinhos e a banda não quer mesmo acompanhar. Porque não se sabe a música, ou porque simplesmente, os artistas desistiram de tocar. Este parece ser o caso que uma realidade que nos diz que, hoje, 60 em cada 100 jovens, entram no mercado de trabalho com um contrato precário. Quem ouve o fado maior deles? Mesmo a cantar ao desafio, desconfiamos que alguém os ouça. 

 

Que fazer do fado?

Ou de (não) saber qual o nosso fado.

Natália dizia, na sua “Queixa Das Almas Jovens Censuradas”, que “Temos fantasmas tão educados /Que adormecemos no seu ombro...”, um fado de contornos delico-doces, muitas vezes negativamente impactante. Um dos fantasmas aqui evocados leva-nos até ao mundo do trabalho, que hoje se pretende digno, promoção organizada por agentes ligados ao mundo da dita concertação, que fazem gala em ostentar a divisa (podia ser qualquer outra), com vista a enlear, ou enredar. O facto de partilharmos outra concepção de dignidade (no trabalho e não só) leva-nos a pensar como é possível tanta hipocrisia, numa conjuntura particularmente sensível para os trabalhadores e respectivas famílias. Um fado seria então de pedir, neste particular, não para entreter, mas para denunciar. Um fado civicamente actuante.

E que dizer, por exemplo, no terrível fardo (fado?) que é deixado de uma geração para a seguinte, em termos ambientais? Será que o destino (fado) é mesmo esperar pela degradação completa do ambiente, levada a cabo por afincados agentes de um sistema económico e financeiro, que apenas tem um fim em vista. Aqui os fantasmas são felizmente mal-educados e de quando em vez saem do armário e é vê-los numa cruzada contra o inimigo.

Não saberemos nunca onde andam os “leões dos lobos dos mares”, evocados na canção. Mas nós que, mesmo sem sermos “Albuquerques”, somos talvez os “capitães” que, com “Sete rios de multidão /levavam História na mão”, no dizer da canção do Zé Mário Branco, quando ele dizia ver o povo a lutar.

Olha o Fado!

 


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