24 maio 2022

 ORDEM UNIDA

 

Uma imagem de outros tempos, ou mesmo destes, ao que parece propensos a algum belicismo e avessos à retórica da paz. Instalado que foi o medo, com algum sucesso e dentro de limites aparentemente aceitáveis, justificáveis até perante a terrível ameaça de bárbaros, que atentam contra o ocidente, eis uma nova instalação, necessária para complementar a primeira e bem oportuna face à guerra. A ordem que é unida não se fica pelo ensaio ritmado, cadenciado e equilibrado dos movimentos de marcha. Vai hoje mais além, passando do gesto disciplinado através da voz ao conceito da autoridade e do comando global.

Se, como dizia George Orwell, a maneira mais rápida de acabar com uma guerra é perdê-la, então a lição a retirar, simples e clara, será da rápida perda de uma das partes em confronto.

Condenada que foi a invasão, o acto de glorificação do regime do país atacado é tão estranho quanto a manifestação de ignorância face tudo o que se passou antes da invasão. Aliás, a voz insuspeita do jornalista norte-americano Robert Kaplan, diz que “ainda que isto possa parecer contra-intuitivo, a própria Ucrânia tem sido, desde há vários anos, uma democracia frágil, corrupta e institucionalmente subdesenvolvida”.

Para compreender outros tempos, recorremos ao escritor Thomas Mann, que, ao interrogar-se sobre o que na realidade assombra as gentes, dizia, na sua obra “José E Os Seus Irmãos”, que “...não é tanto o facto de algo passado se voltar a repetir, mas sim o facto de se tornar presente”. E daí, continua, “...por que razão se converte o passado em presente? Simplesmente porque as circunstâncias que um dia o produziram sempre estiveram presentes”. Isto poderia levar-nos a pensar se o passado do final dos anos 30 do século passado não poderá estar hoje presente na tentativa de domínio do mundo, muito embora sejam diversas as circunstâncias que ora podem estar presentes, ainda que de uma forma camuflada. O mundo é dominado hoje de uma forma mais subtil, mas com a mesma vontade imperial de intervir em todos os actos da sociedade. E tal é visível nomeadamente através do domínio da finança internacional, da pilhagem de recursos e das políticas de armamento, enfim, da multiplicação da linguagem e do discurso bélico, constante e permanente e do desprezo absoluto por um futuro de paz e de desarmamento global. Mas a guerra tem, para os senhores das armas e do dinheiro, um suave perfume que eles próprios vão espalhando no ar, com um efeito de tal forma inebriante que nos faz sentir “seguros” e, ao mesmo tempo, possivelmente “felizes”, porque há sempre alguém que decide por nós, libertando-nos da dura e penosa tarefa de pensar.

O cientista político Guy Mettan, jornalista e escritor independente, disse recentemente que “...a moralidade é um péssimo conselheiro em política” e que se deveriam inventariar todos os dados anteriores à invasão russa para compreender melhor a investida atabalhoada do invasor.

A marcha segue então em frente à cadência de milhares de milhões de dólares investidos. Uma ordem que só é unida na aparência, na futilidade vã dos interesses de cada um dos países laterais ao conflito. A tentativa de transformar o que é um conflito local em conflito global, quer através da profusão do discurso bélico, quer através da imposição de sanções, que em vez de se reflectirem sobre o invasor, estão, apenas e simplesmente, a provocar o empobrecimento global das populações, dos cidadãos e, muito em particular, dos países periféricos da Europa.

Não são, como sustentam alguns sátrapas, os valores típicos do nosso modo de vida que estão em causa. Esse é o maior sintoma de uma putativa superioridade que a Europa pensa que ainda tem, se é que algum dia a teve e que é ainda o reflexo de uma arrogância que bloqueia o diálogo e que prejudica, neste contexto, um eventual plano de acordo para a paz. A verdade absoluta que o chamado ocidente pensa que detém, conduz à absoluta contradição do sentido de liberdade de informação. Depois de ter impedido as estações Russia Today e Sputnik de exercerem a sua acção, a presidência da UE quer agora banir (o termo é mesmo este) mais três estações, a RTR Planet, a Russia 24 e a TV Centre. A presidente da Comissão vai ao ponto de afirmar que estas estações “amplificam as mentiras e a propaganda de Putin”. O mundo ocidental lida, pelos vistos bem melhor, com a manipulação da informação das suas próprias estações, que por serem “nossas”, estão à partida resguardadas de mentiras e propaganda. Felizmente sabemos hoje o mérito de grande parte delas na enorme empresa de espalhar a guerra conveniente e de ocultar sistematicamente aquela que não o é, ou que elas consideram que não é. 

A UE quer nitidamente lavar a sua face. Se nos lembrarmos qual foi a política para os refugiados, das últimas décadas, caracterizada por um enorme desrespeito pelos cidadãos e suas famílias que fugiam simplesmente de conflitos e guerras, grande parte deles provocados pelo agora “lado bom”, poderemos hoje pasmar com o apoio aos refugiados ucranianos. Que nos merecem todo respeito e consideração. Não menos, nem mais que os outros, ligeiramente mais escuros e portadores de outras culturas. Poderá, contudo, ser tarde demais e, mais dia menos dia, será relevada como mais um interesse, que pouco tem a ver com as pessoas e suas famílias.

De um campo de visão estritamente militar, a ordem é de facto praticamente sempre unida. Na praça da política, o funcionamento da unidade, tem outro sentido, ditado fundamentalmente pela estratégia e pela designada geopolítica, uma forma perifrástica de dizer hipocrisia. 

Num escrito de 1933, um diálogo entre o Libertário e o Estadista, que designou “Da Liberdade, da autoridade e do socialismo”, António Sérgio estabelece uma “Regra absoluta da alma livre: nunca aclamar um senhor governante, seja este liberal ou não o seja; por maioria de razão, nunca ser tímido diante dele, não sentir por ele “instintivo respeito” ou “temor aflitivo” ante o seu contacto, mas conservar uma atitude [desprendida,] crítica, ainda que concordemos com a sua obra, ainda que ajudemos na sua acção”. Seria hoje avisado, mesmo sem tomar a “Regra” demasiado à letra, desenvolver um espírito crítico, com as necessárias aquisições culturais que a história e as ciências sociais transportam. Contrapondo à “ordem unida”, uma outra “ordem”, que consagrasse a liberdade dos jornalistas em cada país e o acesso dos cidadãos à informação e à imprensa, no sentido lato. Apostando em medidas concretas para ajudar os cidadãos ucranianos e a economia, defendendo a anulação da dívida pública do País, em vez das sanções que apenas os afectam e prejudicam. Propondo a racionalidade de políticas externas internacionais, ao invés da irracionalidade completa que significa a escalada da guerra global, como o que está a ser feito intencionalmente, ao armar populações, que servem inclusivamente como escudos humanos. Tentando contrariar, como defende o filósofo e ensaísta Edgar Morin, “a escalada da desumanidade e o colapso da humanidade, a escalada do simplismo e o colapso da complexidade e sobretudo a escalada em direcção à guerra mundializada e o colapso da humanidade para o abismo”.

A ordem unida deveria ser substituída pela desordem do caos do pensamento livre.


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