19 junho 2022

O AMBIENTE DA ECOLOGIA

A celebração do Dia Mundial do Ambiente, a 5 de Junho, salda-se, todos os anos, por dois tipos de posição. A primeira é a de um coro imenso de lamentações, porque se passou mais um ano e continua tudo na mesma, ou pior, no que reporta à degradação sistemática do dito (ambiente). A segunda, é a narrativa dos responsáveis, governamentais e não-governamentais, eivadas, na maior parte dos casos por um conjunto de lugares-comuns, ou por declarações, mais ou menos patéticas, de fidelidade à luta por melhores condições de vida e de preservação do ambiente. Em ambos os casos, é um discurso redondo que, embora esgotado na sua essência, ainda parece produzir algum impacto em termos mediáticos, contudo puramente panfletário. Como a questão ambiental é uma das vertentes da ecologia, convém prestar alguma atenção, nesta “celebração” ao estado da arte da mesma, ao menos em termos ambientais.

 

Vulnerabilidades ambientais

Num pequeno, mas muito importante, ensaio do investigador Ricardo Coelho, professor da Universidade de Coimbra e membro do Centro de Estudos Sociais daquela universidade, o Autor aponta aquilo a que chama vulnerabilidades ambientais. Entre elas estão “...nomeadamente a poluição aquática, os incêndios florestais, o esgotamento dos solos agrícolas, uma utilização excessiva do automóvel como meio de transporte, uma utilização ineficiente da energia e o desordenamento do território”. O Autor segue aliás a sugestão de Nick Brooks (University of East Anglia, Norwich) para o conceito de vulnerabilidade, como o “grau de dano resultante da degradação ambiental”. E, face a esta despistagem da situação, aponta um possível caminho que deverá passar pela análise da forma “...como aquelas vulnerabilidades são influenciadas por políticas e instituições que determinam a organização social e económica.”

 

Uma questão ideológica ou política?

As causas das vulnerabilidades passam pelas alterações climáticas e pela perda de biodiversidade. E a questão fundamental é que não parece viável ter um discurso de sustentabilidade ambiental sem uma componente ideológica, ou seja, sem questionar de forma pertinente (e permanente) o modelo económico neoliberal. Se observarmos o que se passa particularmente desde a década de 70 do século passado, podemos constatar algumas variantes a nível dos movimentos ambientalistas, na Europa e na América do Norte, sobretudo no que reporta à intensidade de protestos e reivindicações. Inicialmente radicais e determinados na denúncia das situações, com uma perspetiva ideológica marcadamente anti-capitalista, o que aconteceu depois, terá sido uma progressiva adaptação e uma posterior domesticação, que levou à integração no sistema de uma grande parte deles. E, pior que isso, a uma desvirtuação sistemática da condição ecológica, transportada para o barco, um enorme transatlântico, que acomodou as asserções “desenvolvimento sustentável” e “crescimento verde”. Uma e outra constituem no momento duas das imensas falácias que o neo-liberalismo institui, para, por um lado pintar de verde tudo o que possa ser considerado problemático e, por outro lado, descobrir mais negócios, como o comércio das emissões de carbono, que já se mostraram completamente ineficazes no controle das emissões. O economista ecológico Clive Spash, catedrático de Políticas Públicas da Universidade de Viena e editor principal da Revista académica Environmental Values, refere, em artigo publicado na Revista Manifesto, Temas Sociais e Políticos, nº 5, 2ª série, de Outubro de 2020, que, no ano 2005, “...a União Europeia abriu o maior sistema de comércio de emissões do mundo (CELE), com transacções anuais de cerca de 70 mil milhões de euros antes do colapso financeiro de 2008, e de 50 mil milhões de euro mais recentemente.” Segundo este Autor, o sistema permite “...que os poluidores recebam gratuitamente direitos de emissão que depois podem revender, ganhando milhões.”

As próprias ONGA, organizações não-governamentais do ambiente parecem estar a “converter-se” perigosamente à “verdura” e à “sustentabilidade desenvolvimentista”, até ao ponto de algumas delas, serem verdadeiras empresas, em que os administradores são antigos patrões de multinacionais. 

Política, sem sombra de dúvida, a questão ecológica é forçosamente ideológica, no sentido mais estranho do termo, o da “conversão” neo-liberal, onde parecem convergir tendências aparentemente inconciliáveis, todos pintados com o verde mais ou menos esbatido (conforme a família partidária), irmanados na doce ilusão de salvar aquilo que não tem salvação possível, a saber, a financeirização do capitalismo, ou, no limite, o próprio capitalismo.

Uma coisa é certa, o que se torna cada vez mais necessário e urgente é limitar as emissões e não as transformar em bens transacionáveis ou em arma económica dos que detêm o poder.

 

Os revisionistas ecológicos e o caucionamento das soluções de superfície

É conhecida, e faz alguma escola, a tendência para isolar as alterações climáticas do conjunto das questões ambientais. A forma de tratar, estudar e propor soluções, de uma significativa parte de políticos e comentadores, não vai hoje além de uma abordagem que privilegia os efeitos às causas. Exemplos disso são a poluição, a biodiversidade e o esgotamento dos recursos. Exemplos do falhanço completo das instâncias internacionais, das quais as europeias estão sempre na primeira linha (do falhanço), são o Pacto Ecológico Europeu (2019) e o Acordo de Paris (2020), que, na prática, visam o mesmo, a saber, a dita “neutralidade carbónica” e a “orientação” dos diferentes sectores produtivos para o “grande objectivo comum”. É a chamada “shallow ecology”, a ecologia de superfície, que evita sempre entrar nas questões políticas.

Foi o filósofo norueguês Arne Naess que, nos anos oitenta do século passado, desenvolveu o conceito de “deep ecology”, a ecologia profunda. Na sua obra “Ecology, Community and Lifestyle: Outline of an Ecosophy” (Ecologia, Comunidade e Estilo de Vida: Esboço de uma Ecosofia), o Autor expõe a relevância da filosofia para os problemas da degradação ambiental e o repensar da relação entre o homem e a natureza. Nela estabeleceu o princípio de que “nada é apenas político, e nada é político de maneira absoluta”, pretendendo com ele ilustrar a dimensão política da ecologia, afirmando claramente que a ecologia de superfície não é uma ecologia política e não está à altura de integrar no seu horizonte teórico a ideia de que “o todo é superior à soma das partes”.

 

Tributo aos ecologistas “primitivos” - 

Muito embora o termo “ecologia” tenha sido proposto, no ano 1866, pelo cientista alemão Ernst Haeckel, há exemplos de outros estudiosos que se teriam antecipado, na análise e no estudo, a formas de pesquisa e investigação científicas, pela observação da diversidade. Um dos grandes impulsionador do Romantismo europeu dos finais do século XVIII, Wolfgang von Goethe diria “Em oito dias lendo livros uma pessoa não aprende tanto quanto em uma hora de conversa com Humboldt”, referindo-se ao naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859). Este cientista fez uma expedição de cinco anos pelo Novo Mundo, entre 1799 e 1804, reunindo, registando e estudando povos, artefactos e espécies de plantas então desconhecidas, tendo, para além disso, recuperado o termo "cosmos" do grego antigo, atribuindo-o à obra “Kosmos”, onde procurou unificar diversos ramos do conhecimento científico e da cultura, e contribuindo assim para a introdução de uma perspectiva holística do universo como uma entidade integrada. Ecologista ainda antes de o saber, Humboldt foi, segundo a Wikipedia, “...a primeira pessoa a descrever o fenômeno e a causa da mudança climática induzida pela humanidade em 1800 e novamente em 1831, baseada em observações colhidas em suas viagens.”

 

O “mau ambiente” da ecologia actual

Precisa de algum fôlego, democrático e insurgente. Possivelmente também, insubmisso. Não daquela “insubmissão” tecnocrática dita “fora da caixa”, um termo tão vazio, quanto enganador. A ecologia profunda, a única admissível em termos da defesa e protecção do ambiente, tem que ser capaz de se afirmar, na sua essência e na sua prática. 

Se analisarmos, ainda que telegraficamente, a política dos vários governos constitucionais, desde 1975, encontramos sempre deficiente apoio e tratamento das questões jurídicas ligadas à fiscalização das medidas que protegem o ambiente, falta de tribunais especializados e de magistrados com formação específica. Justiça e Defesa e também Finanças e Economia, sempre foram ministérios alheados das questões ambientais, para além da parca e tímida Reforma Fiscal Verde de 2014. Sempre acima dos interesses e da defesa do cidadão, estão os cortes orçamentais, bem com a “moderna” figura da cativação. Mas também a extinção e fusão de instituições-chave, cujo exemplos mais significativo terão sido a fusão da Agência Florestal Nacional com o Instituto da Conservação da Natureza e Biodiversidade para criar o actual Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas e a perversão completa da Lei da Água, com a extinção das Administrações de Região Hidrográfica, que, em 2012 deixaram de ter autonomia, fundindo-se na Agência Portuguesa do Ambiente, oi que significou um prejuízo evidente da gestão de recursos hídricos. 

Mesmo admitindo uma ligeira melhoria no ensino e na formação das camadas mais jovens da população, reconhecida na Estratégia Nacional  de Educação Ambiental (2017), depressa se irá concluir que, como em todas as áreas vitais do Estado, não há meios para a pôr em prática. Mais importante serão decerto as tais “contas certas”, o grande farol do neo-liberalismo europeu, ao qual todos os governos e administrações prestam vassalagem e juramento perpétuo.

No nosso País, é fundamental, para um melhor ambiente da ecologia definir claramente uma política pública da água. Também apostar em novas políticas agrícolas e comerciais, para uma complementaridade entre produções, produtores e países. E ainda promover o retorno do sector energético para a esfera pública, de modo a ser possível, com o controle público, praticar uma política adequada de protecção dos cidadãos e do ambiente. Mas para tal é necessária coragem política, que manifestamente não existe.

 

O evento deste ano, na Suécia, com o tema “Uma Só Terra”, com a tónica na "Vida sustentável em harmonia com a natureza" e com a divisa “Celebre a Terra connosco!”, não passa de mais um equívoco. Não há nada a celebrar neste dia, como em muitos outros. Só poderíamos “celebrar” a completa ineficácia das autoridades e a sua cumplicidade com as políticas neo-liberais, que produzem, hoje e sempre, miséria e semeiam desigualdades.

Fica então apenas a lembrança do que falta fazer: pensar, denunciar e agir em conformidade.

 

 


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