08 novembro 2022

 A CULTURA DO CANCELAMENTO

19 Outubro 2022

Dois termos provavelmente incompatíveis, juntam-se por estes tempos, para construir uma identidade própria, característica de uma modernidade cada vez mais inconveniente. Anular ou cancelar, do francês “culture de l'annulation” ou “culture de l'effacement”, ou na acepção inglesa, simplesmente “cancel”, emergem hoje, aceites ou simplesmente confirmados.

No ano de 2019, a asserção cultura do cancelamento foi escolhida como termo do ano, pelo dicionário Macquarie. Interpretada de forma genérica, a cultura do cancelamento é uma manifestação de reprovação, punição ou mesmo anulação, oriunda de pessoas ou organizações e que tem como alvo, posições ou simples opiniões, comportamentos ou crenças, contrárias a uma normalidade, tida como padrão. Nos finais do século passado, surgiu na gíria política a ideia que existiria um designado “interesse nacional”, uma norma que se teria tornado doxa, ou seja, um reforço mais ou menos subtil do pensamento dominante. Se é fácil desmontar essa ideia, uma vez que que o interesse nacional é fruto da dialéctica política e é definido pelas contradições existentes numa sociedade pluralista, mais difícil porventura se torna evitar, ou sequer contornar, o desvio populista que aquele fenómeno incarna.

Os conceitos, tidos como pertença de organizações ou sociedades aprendentes, surgiram na segunda metade do século XX. Começam a referir-se como importantes, ou mesmo determinantes, a aprendizagem ao longo da vida e a educação permanente. Se o primeiro fala por si, o segundo merece algumas considerações. O conceito de Educação Permanente, segundo a Associação Portuguesa para a Cultura e Educação Permanente (APCEP), “... e da filosofia que o enforma são assumidos na perspectiva, universalmente consagrada, segundo a qual a plena realização do individuo, no contexto de uma sociedade e de um desenvolvimento equilibrado, passa pelo acesso, fruição e participação dos cidadãos – em condições de igualdade de oportunidades – em diversificadas formas de aprendizagem, escalonadas ao longo da vida e abrangendo os diversos níveis, formas e conteúdos da cultura e do saber...”. Tornar aprendente uma organização e, no limite, uma sociedade, significa admitir a capacidade que o conhecimento tem de transformar a realidade, resolvendo problemas e criando alternativas. A sociedade da informação deveria ser (ou transformar-se em) uma sociedade aprendente. Uma sociedade em que a educação permanente fosse a pedra angular da cidadania. O pedagogo Paulo Freire era de opinião que aprender é conhecer melhor o que já se sabe para partir para novos conhecimentos, acrescentando que a educação muda as pessoas, não transforma o mundo e que são as pessoas que transformam o mundo.

Aquilo que admitimos como dado adquirido, ou seja, a aceitação daqueles princípios e conceitos é porém, hoje em dia, transmutado. O aproveitamento das novas tecnologias da informação e das comunicações, reflectido na internet e nas redes sociais, é exemplo de uma certa expropriação para finalidades que pouco, ou mesmo nada, têm a ver com a verdadeira aprendizagem ao serviço da cidadania, antes configuram um poder oculto ao serviço da desestabilização das estruturas democráticas e do empobrecimento e progressiva destruição do tecido social, corrompendo-o lentamente, mas de forma eficaz. 

Concluir que a sociedade aprendente, na sua essência democrática e potencialmente transformadora, está hoje em causa pela acção perniciosa de agentes e entidades que promovem uma estupidez populista, não deixa de ser penoso e motivo para alerta máximo. Sem qualquer mediação, as redes sociais promovem a seu modo uma cultura do cancelamento. A sucessiva exposição de um tema, abordado de forma imediatista, acaba por ditar uma atitude de endeusamento de posições primárias, promovidas por uma comunicação social alucinante e despida de sentido crítico. Desta forma, se parece transformar a realidade num contínuo espectáculo mediático. Daí à formação de um juízo de consciência vai um pequeno passo. Do juízo à execução um passo ainda menor. Assim se consegue, por exemplo, a pretexto de uma guerra, decretar proibições de livros, discos e outras obras do conhecimento. Assim se excluem artistas, desportistas e cidadãos indiferenciados, pela sua nacionalidade, como se lhes coubesse alguma responsabilidade por terem nascido em determinado lugar. 

E se a mundialização do conhecimento fosse capaz de produzir cidadãos atentos, quanto mais não fosse, ao seu direito de cidadania, o certo é que o contrário é que parece imperar. A cultura do cancelamento estimula boicotes, na sua essência primeira, a pessoas, entidades ou marcas. Mas estende-se rapidamente à censura generalizada, face a posições sociais e políticas que possam ser consideradas como atentatórias a determinados modos de vida, tidos como aceites e padronizados. A substituição do debate e do contraditório pelo ataque generalizado à honra de pessoas e organizações é, hoje em dia, tida como natural. O apelo às sensações e emoções afasta normalmente de cena a análise factual e documental. O retorno aos tempos macarthistas, como tendência populista é perigoso. A ascensão do fenómeno da estupidez é um apelo ao não-pensar, uma negação à inteligência e uma nítida obstrução às sociedades aprendentes. O cancelamento é uma espécie de poder, detido pela pressão populista ou por simples preconceito. O poder que confere ao indivíduo a força que lhe advém de possuir, por exemplo, uma conta em qualquer rede social. Barato e acessível, apesar de ser um falso poder, pode eventualmente configurar um perigo social assinalável.

Há um personagem de um filme de Rainer Werner Fassbinder que diz, “a realidade anda mais depressa que a consciência”. É a questão dos tempos que correm, com factos indesmentíveis que, no dia a dia, mostram o colapso das sociedades tidas como modernas, mas que, na verdade, não conseguiram (ainda) colmatar brechas que prenunciam um futuro pouco risonho.


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