08 novembro 2022

 O ESTADO LIVRE DA POBREZA

28 Outubro 2022

Segundo uma notícia do Jornal Público, deste mês de Outubro, “Portugal é o 8.º pior na lista de países com maior risco de pobreza ou exclusão social. O Jornal afirma ainda que “A pandemia fez com que Portugal subisse de 13.º para 8.º na lista de países europeus com maior risco de pobreza ou exclusão social. O primeiro ano da pandemia criou 230 mil novos pobres.”. Atentemos nas classificações “risco de pobreza” e “exclusão social”. Se a segunda é facilmente digerida, porque lembra alguém que é excluído socialmente, independentemente da razão, a primeira reporta-nos para um fenómeno que merece algum cuidado de análise. Não significa que seja difícil determinar quem é pobre, quando tal releva a possibilidade de lhe faltar algo, em oposição ao rico, a quem supostamente sobejará. Na verdade, a pobreza revela uma carência de bens e serviços essenciais, como a alimentação, o vestuário, a habitação, os cuidados de saúde, para além da impossibilidade prática em fruir da cultura e do lazer. A socióloga brasileira Vera Telles afirma, num estudo de 2017, que, “...na óptica da cidadania, pobre e pobreza não existem. O que existe, isto sim, são indivíduos e grupos sociais em situações particulares de negação de direitos”.

Mais correcto seria então, ao invés de falar em pobres e ricos, falar em explorados e exploradores. Nesta lógica, seremos levados a crer que esta é uma sociedade de classes, que usa um sistema económico perverso para retirar de uma classe o que falta lhe faz, para o distribuir de forma clara à outra classe, excluindo da primeira a possibilidade de usufruir dos instrumentos necessários para a mesma qualidade de vida que a outra detém. Assim se compreenderia melhor a diferença profunda entre cidadãos e os motivos por que tal acontece, na sociedade “moderna” do século XXI.

Na verdade, será decerto bem diferente, pelo menos a nível conceptual, “actuar” contra a pobreza, ou contra a desigualdade social. Enquanto a pobreza equivale ao estado de quem é pobre e, devido a isso, não possui as condições básicas para garantir a sua sobrevivência com qualidade de vida e dignidade, a desigualdade social constata as diferenças entre as classes sociais, utilizando critérios de natureza económica e social, educativa e cultural. Ao constatar as diferenças, a actuação contra tal estado deverá prover a respectiva erradicação, ou seja, acabar com elas, eliminando desta forma a pobreza. Estão em causa aqui a justeza e a dignidade de uma luta, para terminar com uma condição de subjugação. Não é isso que, entretanto, acontece nas sociedade actuais, subsistindo a perspectiva de considerar a pobreza como uma espécie de fatalidade, ou como um fenómeno especial da natureza. É esta versão piedosa, ou mesmo devota, que conduz a interpretações fantasiosas como aquela de culpar as próprias vítimas, uma característica aliás muito frequente nesta fase neoliberal do capitalismo. Uma outra, não menos frequente, pretende mostrar a bondade de algumas pessoas e instituições, mostrando “os seus pobres”, e manifestando a vontade de os expor à comiseração pública, como vimos recentemente em Lisboa, na tentativa, felizmente abortada, de uma conhecida autarca.

Na sociedade do século XXI continua a vingar o sistema de contraposição entre trabalho e capital. Nada mudou relativamente à situação do início do século passado. Os trabalhadores continuam a não ter acesso aos meios de produção, contando apenas com a sua força de trabalho, para sobreviver. Dir-se-ia até que, no presente, na fase neoliberal do capitalismo, a exploração se agravou, face, por exemplo, à constatação dos lucros desmedidos das grandes empresas, que, entretanto, beneficiam de uma política financeira que lhes é favorável, uma vez que se baseia precisamente na transferência de valor do trabalho para o capital. É a base essencial deste tipo de políticas que conduz à uma afirmação dos poderes vigentes, de todas as matizes, que o aumento de salários deve estar subordinado a uma “economia competitiva”. É assim, subordinado a esta lógica perversa, que se assinam acordos numa plataforma, dita de concertação social, onde vinga apenas a posição do capital. É desta forma que se poderá talvez compreender uma certa indiferença social, parecendo normal que os trabalhadores se contentem com as migalhas que o capital lhes concede, como eventual prova de boa-vontade. É assim que se aceita a roda livre que representa a ascensão escandalosa de grande fortunas que, na maior parte das situações, ou não estão sujeitas a impostos, porque existe a figura da transferência de lucros para paraísos fiscais, ou porque abundam as soluções de engenharia financeira para os ocultar, ou porque os poderes públicos se recusam a aplicar-lhes taxar consentâneas.

Um estado livre de pobreza não é exactamente a mesma coisa que um estado onde a pobreza seja livre de aumentar, graças à acção conjunta de administrações e governos que abdicam de cuidar dos cidadãos, entregando-se nas mãos daqueles que exploram e oprimem os trabalhadores, concedendo ao capital todas as condições para que a exploração continue em roda livre. Todas as políticas que, particularmente em Portugal e na Europa, privilegiem a condição de submissão às regras europeias da dívida e de uma moeda única que, na prática, impede o crescimento económico, devem ser consideradas como de regressão social e impeditivas em melhorar as condições de vida dos trabalhadores. É por isso que se compreende, de forma clara, as medidas de um governo que desvalorizam salários e pensões, cortam no investimento público e permitem que a inflação faça o seu caminho, em desfavor de quem vive do seu trabalho e de quem, não o tendo, aprofunde a sua condição de simplesmente excluído. Deve ainda dizer-se que os sucessivos cortes no investimento público conduzem a uma degradação acentuada dos equipamentos, nomeadamente em escolas, hospitais e transportes, com todas as consequências resultantes da fragilização da economia portuguesa.

Entretanto, os que insistem em ver sempre um mercedes à porta da pobreza são os mesmos que se alimentam dela para engendrar um cenário maquiavélico, com base na demagogia e na gritaria. Existe, entretanto, um outro tipo de pobreza, que vem fazendo escola na sociedade do espectáculo: a pobreza da liderança política, nacional e europeia, na incapacidade que demonstra em combater a pobreza, aliada a uma outra, a pobreza de espírito que intensifica a mediocridade e a ignorância, mas que cavalga numa sociedade que definitivamente parece ter perdido a decência. Estranho é que, numa situação limite como esta, onde deveria haver inquietação, haja apenas estagnação.

Hoje em dia não restarão muitas dúvidas em afirmar que quem não quer combater a pobreza, pactua de facto com ela. Quem não quer combater a exploração sujeitar-se-á um dia a ter o que merece. Falar hoje em quatro milhões e meio de pobres não parece representar qualquer sobressalto social, a não ser se aqueles que são sistemática e permanentemente explorados acordem e façam o que tem que ser feito.


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