08 novembro 2022

 O COLAPSO DA CIDADE

12 Outubro 2022

A crítica das cidades começa na aceitação de um princípio universalmente aceite. A Cidade pertence ao cidadão, uma tese natural, que parece não ser contestada na sua essência. Saber hoje se isso é verdade já constitui matéria suficiente, de debate e de diálogo. Merece discussão pública e, mais do que isso, uma urgência que tem a ver com a possível restauração de territórios, no inconformismo e na vontade de ocupação cidadã de um espaço que lhe pertence por direito. Quem pensa que as cidades são, ou podem eventualmente vir a ser, “inteligentes”, como a propaganda neoliberal quer fazer vincar, ficará naturalmente chocado precisamente com o inverso, ou seja, a falta dela.

Começar pela distinção entre residente e cidadão parece fazer algum sentido. Enquanto o primeiro diz respeito ao habitante de uma cidade, o segundo, para além disso quer significar o indivíduo que possui direitos civis, políticos e sociais. “A cidade é, por si própria, depositária da história”. Quem o afirma é Aldo Rossi, na sua obra L’Architettura della Città, de 1966. Aí, apresenta uma teoria geral dos factos urbanos, elementos com uma estrutura e individualidade próprias, para defender um método de aproximação à Cidade. Por isso, poder-se-á sustentar-se que a “residência” é algo mais que o facto de residir, é na verdade a consideração das características próprias daqueles lugares, no respeito à perspectiva histórica e à ligação da pessoa à sua cidade. É, por essa e outras razões, que a importância da reabilitação se deve colocar hoje, como um dos pilares de sustentação de renovação da Cidade, em íntima conjugação com os residentes-cidadãos e na defesa de uma ambiente mais favorável à vida.


As cidades são territórios vulneráveis. Existe um determinado número de variáveis sociais e naturais, cuja dinâmica, no tempo e no espaço, pode engendrar situações mais ou menos perigosas para uma sociedade exposta, no entender do investigador Robert D'Ercole.

Na verdade, os processos de urbanização capitalista, evidenciam realidades tão díspares quanto a segregação, a exclusão, a precariedade e a pobreza de um lado, e a necessidade de acesso privilegiado ao ambiente construído e à definição de altos padrões de qualidade, do outro lado. A Cidade é um território vulnerável que tem de lidar com todas as contradições, tensões e conflitos, próprios e identificados no seu ambiente global. Acontece que, na maior parte dos casos, é notória a falta de visão sistémica e de conjunto dos elementos que formam o espaço urbano, o que virá a determinar grande partes dos problemas socio-ambientais das cidades. Um dos problemas com maior incidência, sobretudo para a classe trabalhadora, que vive afastada dos centros de trabalho e muitas vezes em alojamentos precários, é a necessidade de deslocamento diário, uma rotina onde gasta grande parte do tempo, com graves consequências na limitação da fruição do lazer e da cultura. Naturalmente, se o Estado, autarquia ou central, favorecer as condições para o capital, mais desigual se torna a relação social, no território da Cidade.

A mobilidade é uma das vertentes mais significativas do ambiente da cidade. É, ou deveria ser, um sinal aberto, pela necessidade que temos de nela nos deslocarmos. As cidades conhecem-se, passeando a pé, o que hoje é cada vez mais difícil, em ruas e mesmo nos passeios, pela intrusão intolerável daqueles veículos que deveriam circular nos locais próprios, nas ruas e não nos passeios, assustando e, por vezes, atropelando mesmo, as pessoas. As ditas trotinetes constituem hoje em dia um dos sinais mais evidentes de uma certa imbecilidade, um sério impedimento lógico à prometida inteligência da cidade. É vê-las, circulando, ou simplesmente abandonadas um pouco por todo o lado, parecendo que se reproduzem, ocupando espaço e silenciosamente destruindo o território, pela sua imerecida existência.

A ditadura do automóvel caminha, passo a passo, com a indiferença. Chega a ser penoso constatar a inqualificável atitude dos detentores da máquina. A sua utilização inadequada será mais um sinal de ausência de inteligência, que leva a “abandonar” o veículo em frente a semáforos, em cima de passeios, ocupando, paralelamente a outros, uma via de circulação, perante a total complacência de uma polícia perfeitamente inútil e cada vez mais afastada da defesa do cidadão, muito embora queira desastradamente demonstrar o contrário, afundando-se em mais uma demonstração de falta de inteligência institucional. 

A submissão ao turista é um outo sinal de colapso das cidades. Por variadas razões, que estão normalmente associadas ao facto de se considerar que o País não sobrevive sem o filão do turismo, o cidadão-residente é coagido a subordinar a sua vida e a respectiva qualidade às hordas de turistas que inundam as cidades e, particularmente, os centros urbanos. A submissão é patente, por exemplo, na patética situação de (tentar) falar a língua do turista, coisa muito característica do nosso País, de que é difícil encontrar paralelo em outros lugares. Mas a submissão vai muito mais longe, atendendo ao facto de a maior parte dos centros urbanos, históricos, das grandes cidades, estarem hoje travestidos na sua essência para servir o turista. É o “roubo” da habitação, é a multiplicidade de lojas que vendem bugigangas ridículas para o turista de pé-rapado, cujo interesse está muito longe da cultura, da inteligência e da história do País.

Há ainda os hábitos, tidos como “modernos”, de uma certa vivência noturna, desde as praxes académicas, aos copos no meio da rua, passando pela circulação intrusiva de energúmenos e marginais de claques ocasionais ou do futebol, um lúmpen desprovido de ideias que não sejam o fanatismo imediatista, um radicalismo pernicioso e fascizante. Aqui, tal como nas questões de trânsito, a polícia ostenta uma atitude passiva, quando não complacente. O que configura mais uma falta de inteligência. 

As ilhas de cultura da cidade são isso mesmo, ilhas. Na maior parte dos casos, a sua existência é ignorada por largas faixas de cidadãos-residentes, a quem parece estranho o fenómeno cultural. Seja pelo preço, muitas vezes proibitivo, dos espectáculos, seja pela deficiência de funcionamento dos circuitos de divulgação. A relativa falta de interesse do cidadão-residente por muitas das manifestações afins é uma evidência terrível, que provoca o afastamento pela sua cidade. 

A Cidade mais parece hoje o prolongamento de um grande centro comercial, onde tudo gira à volta de centros de interesse duvidosos e de um consumismo febril que limita positivamente a liberdade, ao contrário do que se poderia pensar, porque o prazer da descoberta e da cultura história está desgraçadamente ausente. Lembrando as “Cidades Invisíveis”, que Marco Polo apresentava ao imperador Kublai Khan, nos diálogos superiormente descritos na obra de Italo Calvino, constatamos hoje uma erosão da Cidade, um colapso evidente que apenas poderá ser evitado pela intervenção constante e permanente do cidadão-residente, na aproximação à vivência da sua cidade, em todos os momentos da sua existência.

A cidade colapsa por motivos bem visíveis. O recente caso da construção de um edifício de dezasseis andares, a poucos metros da Ponte da Arrábida, na cidade do Porto, numa área inserida em Zona Especial de Proteção, brada a qualquer céu, ofusca um monumento nacional, mas é “viável”, constando até que a imobiliária tem mais de 90% das frações vendidas a americanos e brasileiros, com preços na casa de um milhão de euro.

A questão que se coloca se será possível ainda evitar o colapso da Cidade tem provavelmente uma resposta possível. Arriscando dizer que tal não será fácil, adiantaremos que na ausência de políticas públicas sérias de apoio e preservação dos centros habitacionais, só mesmo a intervenção directa dos cidadãos-residentes, de preferência devidamente organizados, em torno das suas colectividades representativas, poderá evitar o colapso anunciado. As vãs expectativas nas possíveis iniciativas das autoridades municipais, não passarão disso mesmo. Acontece que elas estão demasiado comprometidas com altos interesses, dos imobiliários aos financeiros, passando até pelos “comerciais”. As evidências manifestadas, por exemplo, nas cedências continuadas de espaços urbanos para instalar centros comercias, são a prova concreta do poder do neoliberalismo, que aqui se manifesta também. 

Pudessem os funcionários e burocratas compreender as palavras do Zeca Afonso “A cidade é um poro um corpo que transpira / pela palavra sangue pela palavra ira”. Se neles tivessem algum possível eco, diríamos com o Poeta, “Não há céu de palavras que a cidade não cubra/não há rua de sons que a palavra não corra...”



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