04 dezembro 2022

 FORA O ÁRBITRO, QUE SAUDADE...

 

A imagem do indivíduo a quem atribuíram o estatuto especial de “estrela”, a roubar o golo ao colega de equipa, não é apenas o reflexo de uma atitude individual de quem não tem personalidade social relevante e que anda, há algum tempo, a arrastar-se em campo, porque é ele que parece mandar numa equipa de compromisso entre uma federação subserviente, um treinador que não quer pagar impostos e um empresário que detém os direitos da maior parte dos atletas . É sobretudo um sinal preocupante do mundo do futebol, um universo paralelo de milhões e hipocrisia, alimentado por uma comunicação social decadente e que pactua com ele, ao dar-lhe o tempo e a honra que não merece, patente em manifestações de ignorância e cretinice, como, por exemplo, a de um locutor de serviço dizendo “...agora vai ser tocado o hino da.… selecção nacional”.

O contraponto está nas bancadas, com figurantes pagos para apoiar as equipas, com políticos “ao mais alto nível” a deslocarem-se ao país organizador para apoiar a selecção, com dirigentes como o da execrável agremiação chamada FIFA, a ginasticarem um discurso miserável de submissão e corrupção. É a chegada, nunca tardia, do politicamente correcto ao mundo do futebol, com a proibição completa de uso de braçadeiras ou outros adereços “provocatórios” e o impedimento de filmar imagens de invasão de campo e mais ignóbil ditadura de cerceamento da liberdade de expressão, com ameaças expressas. Mas a coisa não fica por aqui, no que toca à destruição da beleza do futebol, com a mais que discutível introdução da tecnologia no jogo, uma intromissão na arbitragem que, ao invés de resolver problemas, vem avolumar as situações de eventual confronto.

É um desporto de privilegiados, eleitos no meio de uma mentira permanente, embora conveniente, que leva inclusivamente a medir as equipas, não pelo valor dos atletas, mas pelo seu eventual valor de mercado. A pessoa deixa de o ser para virar mercadoria, valorizada um ano, descartada no seguinte, negociada em função de dinheiro vivo que aqui nunca falta e de contratos milionários de publicidade.

 

O mundial da vergonha é cada vez mais uma vergonha generalizada de falsidade e de hipocrisia, típica de uma modernidade virada do avesso e na qual, um qualquer “infantino” dita leis e submete Estados, soberanos ou nem por isso, aos ditames de uma retórica estribada na ignorância, na mentira e na cretinice. O presidente-comentador, que fala sobre tudo e mais alguma coisa, diria, bem a propósito, “direitos humanos, sim, mas agora vamos apoiar a selecção...”.

 

Onde estão os eusébios, os pelés, os maradonas, tantos nomes e tantas “lendas” que espalharam em campo a sua classe e talento, mesmo que a “mão de deus” marcasse um ponto na baliza da memória? Onde está o desporto-rei que atraía pessoas e famílias, agora travestidas em figurantes e figurões que espalham o medo e a tristeza da arruaça e da agressão? 

 

O “melhor” exemplo, o mais esplendoroso sinal desta ignomínia é talvez a notícia que os estádios, onde morreram trabalhadores transformados em escravos de ocasião, irão ser deitados abaixo. Não será, entretanto, bem assim, uma vez que o país organizador é um “doador nato” e vai “oferecer arquibancadas desmontáveis a países com carência de infraestruturas desportivas”. E vai converter um deles (estádio) “num hotel de cinco estrelas e centro comercial”. E vai, imagine-se, transformar um outro em “uma escola e zonas comerciais”.

 

O esqueleto já não fica no armário, o elefante já está plantado na sala, o cenário é tão artificial como a máscara de um evento que hoje domina a atenção, ou que desvia esta, para a luz efémera da vaidade e da podridão. Teremos estrelas de lata a prenunciar um Natal de frio no Norte e de sol no Sul,  cheio de nortes de fome e de miséria. Mas claro que nada disto interessa, o var validou o golo e já estamos quase na final...


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