12 fevereiro 2023

A GUERRA COMO CONDIÇÃO DE RECURSOS

5 Janeiro 2023

 

A questão da guerra pode ser abordada em, pelo menos, duas perspectivas. Uma delas será, muito logicamente, a da luta, muitas vezes, pilhagem, dos e pelos recursos existentes, ou em disputa. A outra, do ponto de vista conceptual, radica na aquisição ideológica, eventualmente no desenvolvimento de ideias e conceitos, que, na educação ou na formação dos cidadãos, possam ser utilizados como arma de arremesso, propaganda ou inculcação. As motivações de uma guerra podem ter origem, ou serem consequência, em desentendimentos étnicos ou religiosos, interesses políticos e económicos, vertendo em disputas territoriais, locais, regionais, nacionais ou internacionais. O filósofo e estratega militar chinês Sun Tzu, considerava a guerra indissociável ao ser humano, tendo-lhe dedicado treze capítulos na sua obra A Arte da Guerra, considerando fundamental em cada exército o conhecimento das suas próprias forças e fraquezas.

A guerra no Leste da Europa, que actualmente parece mobilizar grande parte do mundo ocidental, não escapará decerto à análise de cada uma das vertentes, ainda que a segunda possa parecer a mais significativa, por força da orientação que lhe é conferida por uma das partes em confronto. Uma das questões que ora se coloca sobre este conflito reside em saber se terão sido devidamente avaliadas, como aconselhava Sun Tzu, as intenções dos outros, quando um exército se move em terrenos inimigos.

 

A primeira das perspectivas, porventura a origem de todas as guerras, são os recursos naturais. No caso concreto da guerra na Ucrânia, destacam-se as importantes reservas de gás, petróleo e minérios, particularmente de ferro, que existem em território ucraniano. Em 2014 acentuaram-se episódios violentos, por força da disputa com eles relacionada. As minas de carvão do Donbass, famosas pela qualidade do minério, são um exemplo de disputa entre os dois países, sabendo-se que muitas foram inundadas, por força da guerra, desde o início daquele ano. Forçoso será então tentar compreender a tensão constante entre Rússia e Ucrânia, desde há pelo menos duas décadas, para além de outras questões políticas internas.

A propriedade e a política de uso e distribuição dos recursos está em jogo em todos os momentos da vida dos povos e das civilizações. No final do ano de 2019, foi publicado um estudo da Organização das Nações Unidas atestando que, nos últimos sessenta anos, pelo menos 40% de todos os conflitos internos tiveram alguma relação com a exploração de recursos naturais. São referidos recursos escassos, como água e terras férteis e ainda produtos muito valiosos, como madeira, diamantes, ouro e petróleo. Já em 2004, um relatório do Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças, do Secretário-Geral, havia salientado a relação fundamental que, no seu entender, devia existir, entre meio ambiente, segurança e desenvolvimento social e económico na busca pela paz. A melhor definição da guerra, sob o ponto de vista dos recursos, eivada de uma simplicidade chocante, é do sociólogo colombiano Alfredo Molano. Ao dizer que “onde há terras há guerras”, Molano viria a acrescentar, que, em situações de conflito e, no caso particular do seu País, se nota a falência do camponês e a protecção do latifundiário, conforme nos dá conta o jornalista António Rodrigues, em artigo do jornal Público de Novembro de 2022.

 

Mas é de facto no domínio do simbólico que esta guerra ganha um significado maior. Uma das últimas medidas censórias, da autoria da ministra da cultura do governo ucraniano e relativas à proibição das obras de Tchaikovsky é bem demonstrativa, quer da pequenez da governante, quer do que pode ser considerado como uma recuperação do essencial da ideologia nazi. A perspectiva das ideias e dos conceitos, em choque nesta guerra, ocupa um papel determinante, não só entre os beligerantes, mas globalmente, uma vez que foi essa a intenção de uma partes. Um conflito que, ao contrário do que normalmente se pretende, não começa a 24 de Fevereiro de 2022 e remonta, no mínimo, ao ano de 2014, com uma nítida pulsão guerreira contínua, particularmente significativa nas regiões da Crimeia e Donbass e, com o posterior especial relevo nas designadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, que são etnicamente russas e usam o russo como língua materna e estão sob administração da Federação Russa. 

As declarações recentemente conhecidas de Angela Merkel e de François Hollande sobre este conflito, devem ser lidas de forma atenta e demonstram, se necessário fora, que a questão está muito longe da linearidade e simplismo com que é normalmente tratada. Ambos são de opinião que afinal os ditos acordos de Minsk não eram para cumprir e apenas tiveram como objectivo “distrair” as atenções dos russos e permitir o cerco, cada vez mais apertado, àquele país.

O que era um conflito local foi transformado em conflito mundial, com vários pretextos. Um deles tem a ver com a ideia de que defender a Ucrânia equivaleria a defender a Europa, defender a democracia ou defender a liberdade. O caricato da questão é que a Ucrânia é um país com um modelo profundamente anti-democrático, onde não existem partidos nem sindicatos e onde a liberdade sempre foi uma miragem. E onde não são cumpridos os mínimos critérios para a propalada integração na chamada União Europeia. A insistência dominante em enquadrar este conflito, confundindo o bloco ocidental, capitalista e liberal, com toda a “comunidade internacional”, negando qualquer legitimidade aos rivais e tratando-os simplisticamente como “autoritários”, ou mesmo ditaduras, parece querer esquecer regimes tolerados e mais ou menos “patrocinados” pelo bloco ocidental, como é o caso de alguns do Médio Oriente, acabando na prática por os legitimar.

 

A condição da guerra parece ser uma constante do início deste século. Quer do ponto de vista dos recursos, atirando para a precaridade as vidas humanas daqueles que mais sofrem com os conflitos, quer no aspecto simbólico, uma representação grotesca de uma modernidade que sempre será adiada, caso o caminho a seguir não seja arrepiado.

Sobre a questão do pensamento e da crítica, fundamentais nesta sociedade do desperdício e que vê a guerra numa perspectiva holiodesca, nada melhor que a imagem da estrada, que o filósofo norte-americano Marshall Berman nos dá, na sua obra fundamental, de 1982, “Tudo que é solido desmancha no ar”.  Berman diz que “...os burgueses não podem olhar de frente para as estradas que abriram: as grandes e amplas estradas podem converter-se em abismos. Mas os pensadores radicais são livres de vislumbrar aonde conduzem as estradas e seguir por elas”.  Se houver alguma lucidez para tentar encontrar possíveis respostas sobre a guerra, sobre esta guerra, deixem então os livres-pensadores trilhar as estradas amplas da crítica permanente e da renovação de ideias. 

Que nos convide a pensar e, certamente a agir, na estrada que livremente escolhemos.


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