12 fevereiro 2023

O PODER DO MEDO

9 Fevereiro 2023

 

A prevalência dos sentimentos e emoções sobre a racionalidade, determina, em certa medida, o ascenso de ideias e propostas inerentes a uma forma de pensar e agir típica de agentes políticos que, ao abrigo da insatisfação popular, adoptam uma tipologia de comportamento atemorizador, agressivo e, por vezes, violento. Numa sociedade fragilizada germinam facilmente, produzem movimentos e geram organizações partidárias de pendor racista, xenófobo e homofóbico. A aparente indiferença pela política tem um contraponto impreciso, por consubstanciar um perigo ou ameaça, venha ela do cidadão que não encaixa na norma, do estrangeiro, da mulher enquanto cidadã, ou do activista que faz da luta pela transformação social a sua causa. Sempre que se revelam na sociedade sintomas de insatisfação, eis que surgem, como do vazio, figuras de perfil duvidoso, empenhadas na disseminação das suas teses, que tentam encabeçar a insatisfação, com mensagens simplistas e demagógicas, propondo coisa nenhuma, gritando slogans desafiadores, dirigidos a um sistema que dizem querer combater e que lhes proporciona a palavra e a imagem.

Pretendem afirmar-se como representantes do povo, que dizem simples e honesto, tentando atrair para a causa simpatizantes descontentes e, de certa forma, vítimas de políticas que minam a sua qualidade de vida, que destroem os seus legítimos anseios, enquanto membros de uma comunidade. Encontram nos trabalhadores e entre as classes sociais desfavorecidas, o seu público-alvo. 

 

Possivelmente, pretendem instalar o medo. Porque eles próprios têm medo do que é diferente. A sua tremenda insegurança é uma das facetas que revela personalidades mal-formadas e covardes. São racistas, que manifestam a sua raiva contra os emigrantes, os homossexuais e contra as mulheres, que vêem provavelmente como donas de casas, obediente e submissas. São racistas que negam a guerra colonial, que foi manifestamente uma guerra de dominação da uma raça supostamente considerada superior, sobre outras, tidas como inferiores. A designação que adoptaram para a sua agremiação partidária é sintomática da sua postura e do seu assomo, impondo um “basta”, como se lhes tivesse sido outorgado algum mandato sobrenatural.

 

A legitimação pelo voto da formação partidária que se considera anti-sistema, ditada nas últimas eleições, é hoje complementada por posições pouco claras de alguns partidos, sobretudo os do chamado “arco de governo”. Uns, na medida exacta de uma qualquer dependência para um dia governarem em conjunto com eles. Outros, por um caucionamento tácito da sua actuação, por ser eventualmente oportuna. A frustração individual ou social, explica o crescimento da citada agremiação, que apela e convoca as classes médias frustradas e desvalorizadas pela crise e ainda os velhos “proletários” que se transmutam em pequena burguesia, por força de uma eventual condição de transição. 

 

Valerá a pena atentar num escrito do assessor do grupo parlamentar da dita formação, que começa por classificar o partido como o “do bom senso”, remetendo à dita capacidade, todas as orientações que possam ser consideradas para encontrar respostas para as mais diversas questões. Diz por exemplo, que, “Resolver os problemas de justiça e acabar com a corrupção não são tarefas do domínio do extremismo, nem é uma missão radical. É apenas uma acção de bom senso.” E que o tal bom senso não pode ser “alcançado” pelos outros partidos, por manifesta “falta de credibilidade”. E termina dizendo que as “políticas de bom senso” são “cada vez mais valorizadas pelos portugueses”. Não explicitando a que políticas se refere, deixa antever que “...é necessário empreender reformas, racionalizando o funcionamento da administração pública e reduzindo o número de trabalhadores públicos para que o orçamento nacional suporte descidas de impostos a trabalhadores e empresas...”. Recorrendo ao programa, onde se começa por afirmar o designado “primado da moral”, que diz reportar à “auto-responsabilidade” e que deve anteceder e determinar “tudo o resto na condição humana”. E que, a dita “auto-responsabilidade” se estende ao “campo religioso”, derivando “da matriz milenar judaico-cristã”. Este programa afirma três tipos de legitimidade: a moral, a social e a humanitária. A “auto-responsabilidade”, nos campos moral e social, deve “subjugar” a “solidariedade”, considerando que “...a inversão dos termos gera parasitismo social, subsidiodependência ou dependência da ajuda externa dos Estados com a consequente perda de autonomia, liberdade e dignidade de indivíduos e povos que, no limite, conduz à destruição das economias e à corrupção das democracias”. E, para concluir sobre “legitimidades”, o programa defende ainda a “recusa da distopia social” e aquela a que chama “política”, ambas para proclamar a recusa ao “primado da vitimização sedimentado pela revolução comunista iniciada na Rússia, em 1917”.

 

Sobre a possibilidade de classificar este tipo de organizações como “populistas”, importará considerar aqui o contributo da ciência política, que estuda estes casos. 

Umberto Eco, designa-as como um fenómeno de “populismo qualitativo”, onde o chamado povo é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime uma putativa “vontade comum”. Que é interpretada pelo líder, como uma vontade natural. 

O cientista político e professor brasileiro Christian Lynch, co-Autor da obra “O Populismo Reaccionário”, diz-nos que esta tipologia de populismo “é um estilo de fazer política que não é uma ideologia...” e que tem algum sucesso quando existe uma certa crise do sistema representativo. Lynch encaixa este fenómeno numa “forma extremada de conservadorismo”, que define como “reaccionarismo”, distante do conservadorismo clássico, mas mantendo algumas características tradicionais desta forma de pensar, como o primado da autoridade e uma ordem social com um fundamento que é, pelo menos em parte, extra-humano, ..., Deus, o mercado, a História”. Para este pensador, a adesão a esta visão do mundo tem razões como “o ressentimento, o isolamento, a sensação de fracasso pessoal”, uma certa negação da modernidade, que assenta na ideia de que “...a destruição do tempo idealizado do passado, é a causa de tudo o que está mal hoje”. 

 

Um aspecto importante a levar em linha de conta é o carácter sincrético deste tipo de organizações partidárias, no que representa a junção de diferentes doutrinas, com vertentes conservadoras, reaccionárias e fascizantes, numa voz única, que mantém, entretanto, todas as características ideológicas e rituais das que lhe deram origem. Todas elas, sem directamente o assumirem, implicam uma recusa da modernidade. Recorrendo ainda a Eco, atentamos na sua tese de que nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas: “o espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade”. Aqui, uma vez mais, a utilização constante do medo, que é, na verdade, nada mais que uma emoção básica inerente à natureza humana, mas que, em termos políticos, é um instrumento de poder, adoptado por líderes que usam ameaças reais ou potenciais para garantir o controle social. E sobre o medo na política, Maquiavel aconselhou o príncipe que é melhor ser temido do que amado.

 

O escritor português Rui Zink, autor da obra “A instalação do medo”, coloca a questão, “E se o medo fosse um serviço, a bem do país e do progresso, entregue ao domicílio?”, pertinente decerto quando se constata que a “instalação” resultou e estará até consolidada, impedindo quiçá o livre pensamento e a necessária circulação de utopias. Ajudas possíveis poderão vir de qualquer lado, mesmo do mais improvável. Há, porém, uma ajuda de sinal contrário, que é dada pela progressiva desqualificação dos serviços públicos, saúde, educação e habitação, os mais importantes para os cidadãos, contribuindo assim para um eventual sucesso da “instalação”.

O medo do Poder pode ser um sinal para a instalação do poder do medo.


This page is powered by Blogger. Isn't yours?