12 março 2023

ARAME FARPADO, TEORIA E PRÁTICA

 

Este século em que vivemos não pára de nos surpreender, quer com teorias deslaçadas, seja com práticas abstrusas.  Entre muitas e variadas, escolhemos esta, pela curiosidade e espanto e impressionante actualidade. É na Europa, o velho continente que olha para o umbigo e parece ver à sua volta apenas a ameaça do outro, um fenómeno que tem na rejeição a verdadeira substância.

 

A história regista o ano de 1874 como data da patente de um invento que consistia em pontas de ferro enroladas num fio, na verdade a primeira tecnologia de arame capaz de conter o gado. Embora a primeira patente tenha sido outorgada sete anos antes, nos EUA, o mérito da invenção foi para Joseph Glidden, um pequeno proprietário agrícola norte-americano, que acabaria por morrer trinta anos depois, como um dos homens mais ricos do país. Consta que tenha classificado a coisa como “a maior invenção da década”. É a ele que se deve a construção da primeira máquina capaz de o produzir em larga escala.

 

As notícias dão conta de que a Finlândia gastou 380 milhões de euro em arame farpado, ao mesmo tempo que a Bulgária está a construir uma vedação com três metros de altura e arame farpado ao longo da fronteira com a Turquia, para impedir a entrada de imigrantes clandestinos. A Dinamarca manda trabalhar mais um dia, para conseguir pagar custos com a defesa, um vórtice que constitui o centro da paranóia com a defesa, seja lá o que se entenda o conceito de defesa de um país, ou região. 

 

Na verdade, são dois mil quilómetros de arame farpado, que a Europa se propõe montar. A aparente função do dispositivo é para separar pessoas, impedir a passagem. O lado simbólico é muito forte, deixa de ser matéria concreta para se tornar uma ideia, um conceito. O filósofo francês Olivier Razac, um estudioso de Michel Foucault, ao debruçar-se sobre os fenómenos da designada biopolítica e particularmente interessado nos mecanismos de integração e exclusão, publica em 2009, na Flammarion a obra “Histoire Politique du

Barbelé (História Política do Arame Farpado)”. Num artigo de 2013, publicado no Monde Diplomatique, afirma que o arame farpado é, há 140 anos, um símbolo da opressão, que se terá diversificado e assumido assumiu “versões ecológicas”, simbolizando as “metamorfoses do poder”. A sua visão do mecanismo é muito interessante, mostrando que “... a perfeição de um instrumento de exercício do poder não se mede pelo seu refinamento técnico”. É a eficácia que conta e que, nos dias de hoje, assume um refinamento que vai ao ponto de inventar cercas naturais, de plantas com espinhos, mas que até dão flores simpáticas na primavera.

 

A marca é pois, ou parece ser, o impedimento de entrada, a separação de seres humanos, a demarcação evidente de territórios, não por determinantes geográficas, mas sim pela tentativa deliberada de “protecção” de alguns, curiosamente os mais favorecidos por um sistema económico que perdeu definitivamente a vergonha e não hesita em retomar a velha divisa “dividir para reinar”, circunstância que tem conseguido cumprir, de forma brilhante. E esta “união” que foi imposta aos povos da Europa, com promessas de futuro dourado, está dia a dia a mostrar as garras que se afiam, na ameaça à dignidade e à solidariedade, que supostamente eram os seus desígnios iniciais. É mais um sinal que os responsáveis, governantes e funcionários, pouco ou nada aprenderam nas últimas décadas, os simplesmente se recusam a aprender. A prova está na prática política. Recorda-se a proposta de um novo pacto sobre migração e asilo, do ano 2020, que não só não foi aprovado, como viu reduzido ou mesmo anulado o seu efeito, com as iniciativas securitárias da construção de muros e barreiras de arame farpado. O exemplo vem do leste europeu e de países que conhecem bem o significado o resultado prático de muros e barreiras, que remontam nomeadamente ao período da ascensão e domínio nazi.

Entretanto, registam-se, no ano 2022, mais de 330 mil entradas ilegais na EU, um valor que representa um acréscimo de 64% relativamente a 2021, segundo dados do Eurostat.

E constata-se que existe um outo “muro”, sem arame farpado, chamado mar, também faz as suas vítimas, em Itália, em mais um naufrágio, em número superior a uma centena incluindo crianças e mulheres, no passado mês de Fevereiro.

 

A importância da questão em análise é salientada pelo jornalista inglês Timothy Douglas, que é também economista, num artigo de 2017 que denominou muito a propósito “Como o arame farpado mudou a propriedade privada”, notando que no Velho Oeste dos EUA nem os cowboys gostavam dele, mas que marcavam bem a propriedade privada, porque incentivava as pessoas a investirem, um argumento utilizado contra os indígenas, que supostamente, segundo o homem branco, os não sabiam desenvolver e, “naturalmente” perdiam o direito a ele. Conclui Douglas que “...a forma como o arame farpado transformou o Velho Oeste é também a história de como os direitos de propriedade mudaram no mundo.”

 

O filósofo e professor francês Alain Brossat, que escreveu o prefácio do livro de Razac, faz referência à utilização do arame farpado na filmografia do cineasta Fritz Lang, bem como nos filmes que lembram os campos de extermínio nazi e outros realizadores de cinema, como uma “metáfora da violência política” e um “símbolo da crueldade do homem para o homem do século XX”. E, por falar em cinema, assinala-se com muita propriedade a filmografia do realizador francês Tony Gatlif, de etnia cigana e argelina, em que o arame farpado é de certa forma revertido em pautas musicais e cordas de guitarra, a transmutação para matéria artística do símbolo separatista, ou a música a resistir ao mal.



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