26 março 2023

 O LEGADO DE ROMA

 

O estado actual da civilização ocidental é baseado num profundo equívoco, que leva alguns séculos acumulados e que tem hoje um significado especial, em parte devido ao eclodir de um novo século, pleno de retrocessos, no que reporta à degradação das condições de vida da imensa maioria de cidadãos, privados cada vez mais da posse de bens e afundados numa dívida perpétua, resultantes da chamada crise dos sistemas económicos, bem como de uma profunda transformação dos meios de comunicação social, na maior parte das situações propriedade de grandes empresas de comunicação, ao serviço da classe dominante. É, de certa forma, um legado de Roma, que se traduz na herança imperial e profundamente anti-democrática do princípio da dívida que atribui a prioridade absoluta às exigências dos credores e que legitima “...a transferência permanente, aos credores, das propriedades dos devedores inadimplentes”, na opinião do economista e investigador norte-americano Michael Hudson, quando se refere ao facto de todas as nações ocidentais terem herdado da Roma imperial o princípio “sagrado” da dívida.

 

Tal legado, devidamente adaptado à modernidade, foi expurgado da sua componente de realeza e terror, mas sem dúvida integrado no princípio da dominação imperial, que caracteriza as sociedades ocidentais actuais, rendidas a um sistema económico e financeiro que submete os cidadãos à dívida, à guerra e às crises. O Poder nessas sociedades rodeou-se de um intricado mecanismo de “protecção” que se manifesta, nos nossos dias, na informação condicionada e em aparelhos de propaganda altamente sofisticados. Essa “protecção” é o sustentáculo do sistema neoliberal, estádio superior de um capitalismo decadente, agarrado aos últimos recursos que possui. A invocação de Roma, que nunca foi uma Democracia, faz todo o sentido, quer na perspectiva histórica estrita, quer na vertente social e económica, na medida em que as semelhanças são cada vez mais nítidas com a antiga autocracia romana. Uma nova “guerra fria”, na opinião de Hudson, que coloca “...população, os negócios e até os governos em dívida com uma elite oligárquica” e que acontece hoje no Ocidente, na imposição da “...variante moderna desse regime económico baseado na dívida – o capitalismo financeiro neoliberal centrado nos EUA – ao mundo inteiro”. As denominadas democracias ocidentais são hoje, na verdade, verdadeiras oligarquias, que se apropriaram da renda e da terra dos devedores, enquanto promovem a transferência de impostos do trabalho para os negócios. O que predomina hoje na sociedade ocidental é um sistema imperial baseado nos EUA e na NATO, cuja primeira função é endividar os países mais fracos e forçá-los a entregar o controle de suas políticas ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial. 

Hudson diz ainda, num artigo publicado em Agosto de 2022, que “O que não parecia provável há 2500 anos era que uma aristocracia de senhores da guerra conquistaria o mundo ocidental. Ao criar o que se tornou o Império Romano, uma oligarquia assumiu o controle da terra e, mais adiante, do sistema político. Aboliu a autoridade real ou cívica, transferiu a carga fiscal para as classes mais baixas e endividou a população e os negócios.” E conclui o seu raciocínio, constatando uma Nova Guerra Fria, caracterizada pela imposição da “variante moderna desse regime económico baseado na dívida – o capitalismo financeiro neoliberal centrado nos EUA – ao mundo inteiro.” É esta nova aristocracia oligárquica, uma elite privilegiada, que oprime os cidadãos e as nações, a demonstração de poder do “novo” império. 

 

As políticas expansionistas do império não se limitam às fronteiras nacionais. Estendem a sua acção aos chamados países em desenvolvimento, o antigo Terceiro Mundo, os países com economias pouco desenvolvidas, localizados particularmente na América Latina, na África e na Ásia. O expansionismo imperial provoca danos, por vezes irreparáveis, na sua tentativa de dominar, pela força suave do dinheiro e do capital financeiro. A economista e escritora Dambisa Moyo, natural do Zambeze e radicada nos EUA, dedicou grande parte da sua carreira ao estudo do fenómeno da criação de riqueza e da perpetuação da pobreza na designada economia global. Numa das suas obras, publicada em 2010, Dead Aid: Why Aid Is Not Working and How There Is a Better Way for Africa, Dambisa afirma que as grandes quantias doadas por estados ocidentais e organizações como o Banco Mundial perpetuaram a pobreza na África, de forma efectiva. Na verdade, a ajuda externa, consubstanciada em grande parte por programas da designada Cooperação para o Desenvolvimento, gerou verbas elevadíssimas, que não foram investidas em actividades geradoras de empregos economicamente viáveis, tendo ido parar, directa ou indirectamente, aos bolsos de administradores e funcionários corruptos, para além de terem criado um hábito de dependência nos estados clientes africanos.

 

Certamente que sentimos, sempre que ouvimos a grande parte dos comentadores políticos que povoam a comunicação social, uma sensação de que existe uma atitude repetitiva dos mesmos termos, das mesmas “análises”, traduzidas num discurso servil ao poder instalado e eivado de um preconceito ideológico que tem como base o primarismo e a capitulação. Seja por manifesta incapacidade ou falta de preparação, seja porque a maior parte deles está sujeito a critérios burocráticos e de dependência, o certo é que o sector da comunicação social, comumente designado de “jornalismo” é hoje, em todo o mundo ocidental, nomeadamente EUA e UE, para todos os efeitos um “actor político autónomo, dotado das suas próprias prioridades ideológicas”, assim o classificam Serge Halimi e Pierre Rimbert, jornalistas e membros da Direcção do jornal Le Monde Diplomatique. A retórica que hoje domina é conhecida e baseia-se numa premissa falsa. Opor autocracia à democracia é na verdade mais um truque retórico que consiste em tentar ocultar a realidade do esvaziamento de governos e estados da sua verdadeira função social, sabendo que governos fracos permitem que a oligarquia financeira roube as terras e outras propriedades para seu benefício e lucro. O que resulta é que, para o império, uma autocracia é um governo forte que não permite aqueles desmandos e democracia é um governo fraco que os permite e consente. O modo de vida ocidental tão badalado a propósito da guerra, não passa afinal de uma capa falaciosa de traduzir a liberdade do capital para operar segundo as suas próprias necessidades e oportunidades. 

 

Na exacta medida do reforço das ideias avançadas, poderá estar a tendência do carácter de excepção instalado nas sociedades ocidentais. Essa “instalação”, acentuada a partir da crise de 2008, foi tratada sobretudo pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, que sustentou a tese do estabelecimento de um estado de excepção permanente, “embrulhado” na ideia de que está apenas a aplicar as regras do direito. O que acontece de facto, é que estando ultrapassadas crises e pandemias, a excepção continua a ser uma espécie de arma secreta do neoliberalismo para impor a dominação em geral, nomeadamente no que reporta à lógica da financeirização da economia, que obriga à disciplina da dívida por um lado, e à culpabilização individual por outro lado, tendo como objectivo central manter o cidadão submisso e agarrado à “culpa” de viver, segundo a norma, acima das suas possibilidades.

A narrativa é conhecida e passa pela argumentação constante e permanente da Direita, baseada na adulteração da realidade. Um excelente exemplo, muito actual, pode ser a reacção dos dirigentes e comentadores a ela associados, aos aumentos descontrolados do preço dos bens essenciais, nomeadamente no ramo alimentar, que, segundo a sua opinião, estão a engordar cada vez mais o Estado. Esta casta privilegiada não está interessada em procurar a causa e a justificação naturais, que são, na verdade, o enriquecimento e a ganância das grandes empresas que, em situações semelhantes, aumentam exponencialmente os seus lucros, no que representa uma política predatória, sem regulação, uma vez que as “democracias liberais” não incluem medidas desse género.

 

Chegou-se hoje a um ponto que ilustra bem a face do império. A notícia desta semana que uma organização e defesa do consumidor terá criado um dossier de apoio, uma espécie de orientação de “como sobreviver” à crise, é significativa para entender o que está parece estar reservado a quem trabalha e não tem meios de resposta às crises do capital: resta-lhe, apenas e só, sobreviver. A tristeza e crueldade da situação deveria fazer pensar e reflectir sobre o que há realmente que fazer para, no mínimo e em primeira instância, destruir o império e acabar de vez com legado de Roma, com a autocracia e a dominação permanentes. 


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