12 março 2023

 O MAL DO PAÍS


Existe algures, no espaço e no tempo, um sintoma de nostalgia, ou tristeza permanente e que pode ser associado à sensação de estar fora, longe de casa. Franz Liszt traduziu-a muito simplesmente numa peça de rara beleza e de contornos impressionistas, a que chamou “Le mal du pays”, que associava às saudades de casa. A sociedade do século XXI terá eventualmente um entorno que simplesmente não contempla este “mal”, quer devido às circunstâncias de mobilidade permanente, quer pela preocupação com outros “males” de natureza e origem diversas. E se há males que vêm por bem, no entender da sabedoria popular, nem sempre acontece que se justifiquem por si próprios, como necessários, ou mesmo desejados.

 

O propósito de tentar encontrar os males que assolam o País nem é novo, nem faz porventura outro sentido que não seja o de compreender melhor o que se passa à nossa volta, particularmente em momentos de crise, afinal aqueles em que nos vemos confrontados com uma necessidade de encontrar respostas. Onde estão os males e de que forma os podemos identificar? Onde reside a fonte deles e como os devemos debelar? 

 

Um mal do País é a nostalgia da Direita portuguesa, de que a saudade do regresso de Passos Coelho é apenas um episódio. Outros se poderiam elencar no recôndito do baú das recordações que a Direita guarda dos tempos de antanho, de que tem tanta saudade. O homem que foi primeiro-ministro nos tempos da troika e que pretendia ir para além dela, diz que o País não tem um “desígnio”. Que ele possivelmente terá, embora não o revele, porque o mais certo é ser aquele que tinha, o “ir para além...” e que naturalmente não grangeia simpatia, nem rende votos. Tal putativo “desígnio”, convém não esquecer, consubstanciava a culpabilização dos cidadãos, que, para ele e seus apaniguados, viviam acima das possibilidades, uma moralização deveras inaceitável. E que continha uma outra componente, entretanto reeditada, um preconceito ideológico contra os trabalhadores e que se resume na ideia de privatizar tudo para acabar com as greves e, se possível, com os Sindicatos.

A hecatombe da Direita tem, no seu horror ao vazio, uma faceta grotesca, que deriva da falta de líderes credíveis, a nível europeu. No nosso País, a força aparente que lhe advém da representação parlamentar, contrasta com a nulidade de propostas inviáveis e que ostenta na repetição de chavões demagógicos e provocatórios a sua “marca de qualidade”.  Isto aplica-se, embora de forma diferente, aos dois “novos” partidos, que ocupam hoje uma faixa significativa do lado direito da Assembleia, representando as duas caras da Direita, uma convencional, que disputa terreno ao PSD e a outra, de cariz assumidamente anti-sistema, utilizando as “vantagens” daquilo que nega no discurso e na prática. Em ambos os casos, existem sinais evidentes de despovoamento de ideias e de esvaziamento conceptual das mentes que os defendem e animam.

 

A existência de um desígnio tem sentido para a Direita internacional e para os seus apoiantes, quer sejam os naturais, quer os de ocasião. Um dos melhores exemplos é dado por António Costa, que tem manifestado o “seu desígnio”, sempre que lhe convém. Recuando precisamente dois anos, a Março de 2021, lembramos afirmações suas, “...precisamos que os Europeus abracem esse desígnio e o sintam como seu porque são eles, afinal de contas, o seu destinatário final”. Assim o disse, na qualidade de Presidente em exercício do Conselho da União Europeia, no seu discurso na cerimónia da assinatura da Declaração da Conferência sobre o Futuro da Europa, em Bruxelas. Disse ainda que “Temos uma agenda estratégica para o futuro que une as instituições europeias em torno de um desígnio comum: uma Europa mais forte na proteção dos cidadãos e das liberdades, com uma base económica dinâmica, verde, justa e social, e capaz de promover os interesses e valores europeus na cena mundial”. E acrescentou, “precisamos que os Europeus abracem esse desígnio e o sintam como seu porque são eles, afinal de contas, o seu destinatário final”. Este discurso, completamente vazio, é profundamente demagógico e perigoso. A base económica pintada de verde é um fiasco, a sua faceta social é enganosa, falsa e geradora das maiores desigualdades e a sua vertente justa é um sacrilégio, sabendo-se das consequências nefastas do neoliberalismo inspirador, onde impera a ganância e a injustiça social, naquele que é o maior saque da história, a descarada transferência de valor do trabalho para o capital. E, quanto ao “desígnio” de base, estamos entendidos, se há coisa que esta “união” não tem é mesmo uma “agenda estratégica para o futuro”.

 

O País fica com um mal congénito, entre os que dizem que falta o desígnio e aqueles que dizem já o ter. E, o mal do País é muito provavelmente o trauma do desígnio. É ter a saudade de algo, neste caso concreto, a da reactivação de privilégios ou a concessão de outros tantos. Não servem seguramente à maioria dos cidadãos, nem o desígnio dos saudosos do passado, nem a falácia do “paraíso europeísta”. Sabem disto os cidadãos, que, em sacrifício constante e com um magro e por vezes miserável salário, lutam por uma vida digna e sempre contra tudo que lhes é adverso, nomeadamente os aumentos desmesurados do custo dos bens essenciais, das prestações ou rendas das casas, ou dos combustíveis. 

Afinal o desígnio parece ser a luta contra o desígnio dos outros. A sociedade tem no seu seio interesses antagónicos, entre quem detém os meios de produção e quem trabalha, muitas vezes para sobreviver. Não adianta tentar esconder o conflito, por vezes latente e agudo quase sempre, a luta dos trabalhadores é contra o capital.

 

A filosofia do desígnio é uma filosofia de miséria. Recorrendo aos clássicos, lembramos Marx e como ele se opôs à miséria de uma filosofia complacente, que “não compreende nada do desenvolvimento histórico da humanidade”, assim o disse sobre Proudhon, numa carta a Pável Annenkov, de Dezembro de 1846. A sua “Miséria da Filosofia” seria a resposta à obra de Proudhon “O Sistema das contradições económicas ou Filosofia da miséria” e nela se encontram algumas respostas que o tempo não apagou, como quando fala, por exemplo, dos aumentos de preços e da sua relação com as greves. Esta matéria, tão do gosto da casta neo-liberal dominante, versa a teoria de que as greves para pedir aumentos de salários provocam por si mesmas um aumento de preços. A explicação que Marx dá em 1847 é de uma actualidade gritante, ao negar a “evidência” de Proudhon: “...se o preço da todas as coisas dobrar ao mesmo tempo que o salário, não haverá alterações dos preços, haverá mudança apenas nos termos…uma alta geral dos salários produziria uma baixa geral dos lucros e o preço corrente das mercadorias não sofreria alteração alguma”. Por esta hora, a Comissão Europeia anda a culpar os aumentos salariais pelo atraso do alívio da inflação. E a bater na tecla, entretanto gasta, que os aumentos salariais inferiores à inflação, que reduzem o salário real e, por conseguinte, o poder de compra, estão a contribuir para manter ou aumentar os níveis de inflação. Esta, que terá de ser devidamente explicada aos cidadãos, foi causada por problemas nas cadeias de abastecimento e pelo resultado das medidas desastrosas propostas, ainda em uso, em relação à pandemia e à guerra na Ucrânia.

 

Esta “filosofia” está em boa medida a ser derrotada nas ruas. A questão fundamental a equacionar é se a luta consegue debelar o “mal do país”, a tempo suficiente de inverter a situação. Convém recordar o exemplo da Grécia, que em 2015 foi “invadida” pelos suspeitos do costume, que lhe impuseram um regime de terror económico e social, após eleições livres cujo resultado não lhes agradou, um mal terrível que ainda hoje se revela.


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