28 maio 2023

 O CHARME DISCRETO DA SERVIDÃO

18 Maio 2023


 

Servir a um amo não é propriamente uma ideia recente. Remonta à antiguidade e sempre foi um factor de discriminação. O objectivo de dominar e subjugar pode ser brutal, discreto e mesmo suave, não abdicando, porém, de ser o que é. Uma das formas mais subtis que a Idade Média introduziu foi a condição de servo da gleba, destinada a suavizar a escravatura. O servo continua a ser escravo, mas da terra e não propriamente de um dono. A ideia de servidão existe também na lei, no caso de um encargo imposto num prédio, quando o respectivo dono tem a faculdade de usufruir ou aproveitar vantagens ou utilidades de prédio alheio em benefício do seu. Donos continuam a ser os que detêm os meios de produção e de distribuição, exercendo o seu poder sobre a maioria da população trabalhadora. Predial ou não, a servidão continua a ser o problema primeiro das sociedades capitalistas.

Em meados do século XVI, o filósofo francês Étienne de La Boétie escreveu um hino à liberdade, a que chamou “Discurso da Servidão Voluntária” e onde sustenta a tese da obediência consentida dos oprimidos. Nele se fala do “tirano”, que, para além da esfera política agrega ainda o domínio da consciência, propondo de certa forma o estudo entre o domínio e a servidão nas relações interpessoais e em que o Estado intervém, na exacta medida da legitimação da subordinação. Em pleno século XXI, o ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger publica a obra “O Afável Monstro de Bruxelas, a Europa Sob Tutela”. Após aturada investigação sobre a designada “União Europeia”, o Autor mostra a evidência da ausência de democracia, manifestada pela imposição de regras e normas inerentes ao sistema neoliberal, que representam hoje uma verdadeira autocracia, em que a servidão é o charme discreto de um poder, pintado com as cores da mais profunda demagogia e servido por um aparelho imenso de propaganda, pago pelos estados-membros. A multiplicidade de organismos não-eleitos que efectivamente exercem o poder de facto, na dita união, é completada com uma teia burocrática que domina as máquinas de Bruxelas e Estrasburgo e que arrasta a imensa maioria dos Estados para a estagnação económica, impedindo o crescimento. As crises perpétuas arrastam a ruína e o declínio de uma civilização que se auto-subjuga aos interesses dos poderosos, nas vertentes económica, financeira e das indústrias da guerra.   

Curiosamente, é um assumido liberal, o economista e filósofo austríaco Friedrich von Hayek que, em 1944, apontava a necessidade de abandonar o caminho para a servidão, trilhando o da liberdade. Em boa verdade, o “caminho” apontado, mais não foi que a teorização dos princípios de um sistema económico que hoje representa a mais refinada servidão. Um sistema que ostenta hoje esta realidade chocante: 63% de toda a nova riqueza criada desde 2020, no valor de 42 mil milhões de dólares beneficiou apenas 1% da população mundial. Os poderes constituídos fazem escolhas ao proteger os detentores do capital. Essas escolhas chamam-se, como afirma Sandra Monteiro, Directora do Le Monde Diplomatique, em artigo de Abril passado, “...mercantilização, financeirização, neoliberalismo, tudo formas de expressar uma construção político-ideológica global, apoiada nos Estados, de transferência de rendimentos do trabalho para o capital, que arrasa comunidades e o planeta.”

O País onde vivemos e trabalhamos é, como por essa Europa dentro, palco de um discurso vazio, politicamente correcto, para além de punitivo relativamente a quem trabalha e passa por dificuldades. E que tem como finalidade primeira ocultar a realidade às pessoas, que, no dia a dia, vêm os preços dos produtos, as rendas e outros bens aumentarem escandalosamente. Esse discurso contribui para que raramente se discuta o essencial, que deveria ser a qualidade de vida dos cidadãos. Na opinião do economista Eugénio Rosa, “Uma das campanhas de manipulação da opinião publica em curso tem sido convencer os portugueses que os preços estão a diminuir e a economia a crescer. Para isso distorcem-se dados e ocultam-se outros.” Este economista utiliza os dados oficiais da Direcção Geral de Energia e Geologia para constatar “...a subida dos preços dos combustíveis, foi muito maior nos preços sem impostos, aqueles que revertem na totalidade para as empresas, do que nos preços dos combustíveis com impostos, embora, à primeira vista, pareça impossível”. E informa ainda, com base em registos do INE e do Eurostat, que, entre Março e Abril deste ano a inflação média anual manteve-se praticamente igual, na casa dos 8,6% e a inflação anual dos “produtos alimentares e bebidas não alcoólicas” aumentou de 16% para 17,2%. Confirma que os preços em Portugal continuam a subir, prevendo-se uma inflação real na casa dos 9,5%. A verdade é que os produtos estão mais caros e tal significa um sufoco para uma grande parte dos cidadãos. E uma outra verdade é que há quem esteja hoje a consumir menos na alimentação, por culpa da redução do poder de compra.

Um dos factores que contribui para o agravamento das condições de vida dos cidadãos, particularmente dos trabalhadores, é o aumento das taxas de juro. Poderíamos pensar que existe uma opção do governo para proteger os seus concidadãos. Todavia, o que se passa parece ser exactamente o contrário. Numa economia sobre-endividada como a do nosso País, a opção pelo cumprimento escrupuloso das regras ditadas por Bruxelas, consiste numa dupla penalização, uma vez que as medidas adoptadas servem para tudo, menos para o que deveriam servir. Os preços aumentam e continuam a aumentar e o que se vê é o regozijo governamental porque a economia está a crescer mais que a média europeia. Mas o que significa isso em concreto para as pessoas?

O que os cidadãos precisam mesmo de saber é que, desde a entrada do euro foi destruído grande parte do sector produtivo, da agricultura e das pescas, para se apostar no imobiliário e no turismo, imposições da dita união. Que foi seriamente ameaçado o poder de compra dos trabalhadores, dos pensionistas e reformados. Que os salários nunca acompanharam o aumento do custo de vida e que constituem, em 2023, um verdadeiro escândalo dentro da própria “união”. Que o emprego qualificado diminuiu. Que uma moeda forte demais para a economia portuguesa determinou a progressiva estagnação, para a qual a única saída possível seria, no mínimo, um fortíssimo aumento do investimento público, na saúde, na habitação, na escola pública e em todos os sectores necessários ao desenvolvimento efectivo do País. Mas tal não é “permitido” aos governos nacionais eleitos e quem não o permite são os directórios europeus que não são eleitos. É preciso dizer que isto não é Democracia, ao contrário do que afirma a propaganda dos que mandam na Europa. Uma notícia da semana passada, dava conta que Bruxelas “culpa aumentos salariais” para um atraso do alívio da inflação...

Na verdade, a luta por melhores condições não é uma figura de retórica, antes significa o mais elementar dos direitos de quem trabalha. Hoje é uma luta de sobrevivência. Amanhã será a de repor a justiça social, retirando os privilégios a quem impõe a servidão permanente, mesmo que sob o “manto diáfano da fantasia”, com o charme discreto que a hipocrisia burguesa lhe outorgou. 

Hoje a luta é, ou deve ser, pelo Poder. Pela conquista do Poder. As consequências são claras, as opções irão determinar as formas que tal conquista acarreta. Os partidos e organizações políticas, que se reclamam dos trabalhadores, deverão ter a palavra certa, no momento oportuno. A servidão só terá fim à vista quando tal acontecer.


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