28 maio 2023

 O MITO DA ALTERNÂNCIA

25 Maio 2023


 

Perceber hoje o significado de “alternância” é importante e possivelmente será uma das chaves para a compreensão do fenómeno político. Em Portugal e na Europa, não deixando de levar em consideração o panorama internacional, que, como se vai constatando, ultrapassa a visão estreita que circunscreve à Europa e EUA a primazia de tudo o que passa no mundo. Mudar ou fazer variar sucessivamente, poderão ser sinónimos de "alternar", sendo a “alternância”, na sua significância elementar, a acção ou resultado de alternar. Mais que um conceito, a alternância adquire nos dias de hoje, o primeiros dos equívocos das democracias frágeis, mal consolidadas, ou simplesmente formais. Ligada ao Poder, a alternância é na verdade um mito dos tempos modernos, que urge desconstruir. 

 

O mito estende-se também à democracia. Sendo, como é, associada formalmente à alternância de poder tout court, perde sentido ou é simplesmente dele esvaziada e dá lugar a outro equívoco. É vulgar ouvir dizer, vivemos em democracia, existem partidos políticos, há eleições, este é o melhor sistema que existe. A tese é extensível, para muitos, ao designado “modo de vida ocidental”, o melhor que há, porque é supostamente superior a todos os outros.  Na verdade, a alternância é apenas um dos mitos da democracia.  Outro dos mitos é a separação dos poderes executivo, legislativo e judicial. A curiosidade está em que a dita alternância só se aplica, na prática, ao poder executivo, tanto assim é, que, quando há eleições se fala apenas em quem vai chefiar o executivo e muito pouco como será a composição da assembleia, que tem poderes legislativos. O judicial está normalmente fora das contas e tem o papel de proporcionar justiça para os “poderosos”, afinal a classe que detém o Poder.

 

E se a alternância se reportasse a uma efectiva mudança de políticas, no sentido de melhor servir os cidadãos? Teria toda a lógica que assim fosse, se atribuirmos o verdadeiro valor ao termo “mudar”. E é aqui que a democracia deveria ter um outro papel, que não somente a garantia de mudar o partido ou a coligação que está no Poder. A distinção entre os sintagmas “democracia representativa” e “democracia participativa” serve apenas para ofuscar a verdadeira questão, que é, ou deve ser, a da necessidade da transformação social. De facto, a democracia, enquanto poder dos cidadãos deveria incorporar aquelas duas vertentes, numa síntese harmoniosa. 

Não é isso que acontece de todo. Nos modelos ocidentais poderemos encontrar exemplos variados de países em que se admite existirem democracias consolidadas e, ao mesmo tempo, capazes de impor aos cidadãos, muitas vezes com rédea curta e mão de ferro, as maiores injustiças, atropelos e mesmo atrocidades. Sempre na forma de guerras exportadas ou por procuração ou sob o controle de sistemas económicos e financeiros verdadeiramente destrutivos para as pessoas e para a natureza. Mas sempre também com a justificação pérfida que o “nosso” sistema é o melhor que existe e não há alternativa. E é precisamente assim que a questão se resolve. Ou não resolve. 

 

Uma das premissas que se costuma avançar para justificar a questão é a falta de qualidade dos governantes, aliada a uma incapacidade de tomar decisões. As duas poderão ser uma justificação, mas jamais serão a justificação. Sempre existiram governantes fracos ou fortes, competentes ou não, dedicados à defesa de princípios e valores. O verdadeiro problema é que a alternância não existe no nosso País, há mais de quarenta anos. Para existir alternância seria necessário equacionar e pôr em prática verdadeiras políticas de ruptura, nos planos económico, social e político. Políticas alternativas para dar resposta aos problemas que o País enfrenta, na saúde, na educação e ensino, na habitação, no emprego, na indústria, na agricultura e nas pescas e nos sectores de produção e distribuição de bens essenciais e outros serviços. A alternativa existe e deverá consubstanciar uma mudança radical de atitude, na política e na economia. O mito da alternância não permite, nem de longe nem de perto, a necessária mudança. Apenas serve para alimentar um sentimento de descrença dos cidadãos que não conseguem resolver os seus problemas essenciais, nem encontram qualquer saída que não seja agarrarem-se a populismos duvidosos. Precisamente porque não há alternância verdadeira, a não ser a dança permanente entre partidos que, embora o neguem, seguem a mesma cartilha, às vezes a mesma cassete, hoje transformada, com a transição digital, num formato pretensamente moderno, com termos e conceitos que são a face dócil da dominação e da subjugação.

 

Contra o mito, contra todos os mitos, é necessário falar claro. E falar duro. Por exemplo, é preciso dizer aos cidadãos que sem um rompimento com o sistema da moeda única, que estrangula o crescimento, não é viável, nem possível pensar em desenvolvimento económico, nem em redistribuição do rendimento, nem em justiça social. Não é verdadeiramente possível exigir mais investimento em políticas públicas, sem romper com o mito, mesmo que não seja de imediato. Mas é preciso e imperioso que tal se discuta e analise, para poder agir, no momento considerado como certo e oportuno. Mais, é preciso dizer aos cidadãos que o sistema desta “união” não é democrático, nem justo, que é um sistema de proteccionismo que urge erradicar, para construir uma Europa solidária e definitivamente afastada da corrida belicista e que tal só é possível com a rejeição dos tratados de expansão e de guerra.

 

A tese modernista em considerar tudo o que não encaixa no pensamento único como “preconceito ideológico”, tem um sentido proteico e encarna a forma que melhor se conhece para mistificar e enganar, contribuindo para o afastamento progressivo dos cidadãos e para a incubação, gestação e posterior nascimento e florescimento de serpentes venenosas, os grupos de natureza nazi-fascista, racista e xenófoba. 

A negação da alternativa, que formulou a divisa TINA (There Is No Alternative), durante o conturbado período da pretensa “salvação dos países europeus endividados”, constitui a tensão suprema do neoliberalismo, para reduzir aos mínimos o chamado “sistema democrático”. Que na verdade não o é, por incorporar o gérmen da intolerância, da industrialização das consciências, da discriminação e da exclusão. Os governos que hoje se sujeitam, muitas vezes de forma acrítica, como é o caso dos países submetidos à ditadura económica e financeira do espaço designado de “União Europeia”, alimentam o mito da alternância democrática, da democracia e são cúmplices na destruição sistemática dos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O sociólogo brasileiro Michael Löwy disse em 2015 que a imensa Europa, após o triunfo do neoliberalismo, mais parece um grande partido único, chamado PMU (Partido do Mercado Unido), com duas variantes que apresentam diferenças limitadas, a versão de direita neoliberal e a de centro-esquerda social liberal.

 

A asserção de Aristóteles de que “A dúvida é o princípio da sabedoria” vale um postulado. Hoje assiste-se a uma autêntica negação da sabedoria, muito particularmente porque parece não haver lugar para a dúvida. Aliás, quem se arrisca a duvidar das narrativas mais ou menos oficiais, é imediatamente rotulado de epítetos conhecidos, como são exemplos vivos e actuais, as relativas à guerra, que, para uma imensa maioria “iluminada” só existe no território ucraniano. Proibido assim duvidar, está instalado neste mundo a velha tese se não és por mim, és contra mim. A sabedoria passou para um plano de resgate. Instalado o mito, instalado o medo, não há lugar a qualquer alternativa, que não seja a insubmissão e a revolta permanente. Claro que isto tem um preço.


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