14 maio 2023

SOBRE A QUESTÃO DA PERTENÇA

11 Maio 2023

 

Pertencer a um grupo, ou a uma comunidade, implica perceber algumas das determinantes em jogo, a primeira das quais poderá ser a percepção do próprio grupo, enquanto conjunto de propriedades comuns para a identificação pessoal. O mundo moderno é hoje um lugar de circulação de pessoas e culturas, embora muitas vezes o seja por imperativo de guerras e catástrofes, que obrigam a um movimento contínuo. A adesão voluntária a um grupo é uma das condições de liberdade do Homem. A exclusão, como contraponto, é, na maior parte das vezes, um sinal de degradação das comunidades. Na matemática, a teoria dos conjuntos enquadra uma relação entre elemento e conjunto, designada de “pertinência”. Nas ciências sociais, a questão pertinente que se coloca é a de saber que valor é dado à pertença e como esse valor pode interferir com a vontade e o direito do cidadão.

 

Um grupo social que parece escapar à pertença, seja ao país, à nação ou ao território, é seguramente o dos refugiados. Sabe-se, através do relatório de situação do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), que é actualmente de 100 milhões o número de pessoas deslocadas devido a guerras, violência, perseguições e abusos de direitos humanos. Se o mundo é um local perigoso, esta poderia ser decerto uma marca visível desta afirmaçãoOu a comunidade internacional se une para enfrentar esta tragédia humana, resolver conflitos e encontrar soluções duráveis, ou esta tendência terrível continuará”, diz o Alto-Comissário da ONU para os Refugiados, Filippo Grandi, que vê aquele número a subir todos os anos, na última década.

 

O exemplo do Ocidente, na forma como lida com a situação dos refugiados, expatriados ou “rejeitados”, é paradigmático. Uma sociedade que quer manifestar a sua superioridade, em valores, conceitos ou princípios e que, contra todas as boas normas de saber ouvir e pensar, pretende exportar e impor os seus modelos de governação e de natureza económica e financeira, acaba por ver sempre o mundo, através da sua estreita janela. Os exemplos são na verdade exactamente o contrário dos princípios e o que se constata é muito mais um deslaçamento social do que qualquer propósito em reforçar laços de pertença, ou de cidadania. A exclusão reina no dito espaço europeu, por força de um sistema económico castrador e incapaz de cimentar a coesão social. A melhor prova foi a forma como foi tratada a pós-pandemia, na vertente do isolamento forçado e arbitrário. O que se passou foi, pura e simplesmente, um reforço do autoritarismo, restritivo de liberdades, um isolacionismo e uma estigmatização de pessoas e grupos sociais, que já sofriam de discriminação, por serem “diferentes” ou mais velhos. Atitudes excludentes e comportamentos anti-democráticos que se reforçaram depois de Fevereiro do ano passado, aquando do reacender da guerra na Ucrânia. 

 

A socióloga política catalã, Maria Guibernau, especialista em nacionalismos, estuda as transformações globais que determinam a estrutura do nacionalismo e da identidade nacional, bem como a análise da diversidade nacional e étnica, particularmente na União Europeia. Segundo a investigadora, as questões de identidade, quer políticas, quer de mobilização cultural, são determinantes na definição de soberania. Ao mesmo tempo que afirma que a “solidariedade gratuita não se pratica”, distingue soberania e nacionalismo. À primeira atribui a capacidade de uma comunidade ser livre para decidir o seu futuro político. Ao segundo reconhece-lhe a dupla faceta de estar associado ao direito das diferentes culturas de sobreviver e de se proteger, por um lado, e, por outro lado, de estar ligado à limpeza ética, à exclusão e ao nazismo. A cientista fala em cinco dimensões, psicológica, cultural, territorial, política e histórica, necessárias à compreensão de “nação”, um grupo onde uma comunidade se possa constituir e partilhar uma cultura comum. A ligação a um território, onde exista um passado e um projecto comuns determinará, de forma consciente, a necessidade e o direito de se governar. A perspectiva “nacional” não deve, contudo, dissociar-se da visão internacionalista que os trabalhadores precisam para lutarem contra a exploração.

A questão de pertença poderá ser um dos maiores desafios do século XXI, que convive com o dilema e aparentemente ainda não encontrou forma de o superar e de estudar de que forma a pertença dos cidadãos é determinante para essa superação. Ou que seja, no mínimo, uma qualidade a ter em consideração. As pertenças podem ser diversas e, por vezes, podem até opor-se e fazer com que os cidadãos sejam forçados a fazer escolhas, nem sempre fáceis. As pertenças não têm todas o mesmo grau de importância, sendo elementos constituintes de uma identidade, conforme nos diz o escritor libanês, também com nacionalidade francesa, Amin Maalouf.

 

Em princípio, os grupos de pertença promovem e estimulam a autonomia e a identidade pessoal e social dos cidadãos, ajudando o desenvolvimento das capacidades e potencialidades de cada um. Todavia, esses grupos não devem dissociar-se da prática da análise e discussão políticas, que elevam a formação e contribuem para uma intervenção cívica e política, de forma consciente e deliberada. A pertença a uma comunidade é parte integrante de qualquer formação cívica. Max Weber e Karl Marx trataram, a seu tempo, a questão da necessidade da inclusão do indivíduo num grupo. Weber, dando ênfase à pertença a um grupo, uma organização, uma administração e um Estado. Marx, preocupando-se com o facto de a burocracia não levar em consideração a pessoa humana e de não lhe oferecer a necessária pertença. E foi Franz Kafka, contemporâneo de Weber, a reforçar o pensamento de Marx, colocando nas burocracias a responsabilidade e os obstáculos à “pertença”, pela sua construção negativa, com labirintos de normas e regulamentos que se atropelam, forjando organizações administrativas ineficientes e alienadas. Nos dias de hoje, a burocracia constitui uma espécie de punição aos excluídos, um afastamento progressivo dos circuitos de decisão, uma quebra imensa na sua relação de pertença social.

 

Um espaço que poderia ser de pertença dos cidadãos é, na era moderna, a cidade. O desenho, construção e ocupação de ruas, praças e avenidas determinam a relação com o edificado e deste com o cidadão utilizador. Todos os espaços de uso público deveriam constituir-se como resposta às necessidades das pessoas, uma vez que possuem características que conduzem à apropriação pelos cidadãos e apresentam-se como fundamentais para a vida em conjunto. A questão da pertença passa, em parte, pela identificação do cidadão com o território. E este deve estar ao serviço da prática da cidadania e da democracia, determinantes fundamentais para a intervenção cidadã. 


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