25 novembro 2024
A COMPARÊNCIA
“Porque é que de mim levo o mesmo pressentimento
de jornadas para sempre infrutíferas
que está no morto firmamento...”
"O Pranto da Escavadora, III", de Pier Paolo Pasolini (1956)
A comparência de hoje na Assembleia da República (AR) à farsa orquestrada para comemorar o tal dia de Novembro, curiosamente vinte e cinco, foi classificada por Rodrigo Sousa e Castro como uma “fantochada”, na entrevista à rádio TSF, às 10 horas da manhã. O ex-militar de Abril, que foi um dos subscritores do chamado “Documento dos Nove”, tem uma visão fática e algo ingénua do levantamento daquele dia. O Grupo, que tinha o mesmo nome do Documento, era constituído pelos ditos oficiais “moderados”, alguns dos que se opunham ao desenvolvimento do processo revolucionário em curso e que haviam derrubado o V Governo Provisório de Vasco Gonçalves, em Agosto de 75. Sousa e Castro procurou, da forma que melhor conseguiu, transmitir o seu desencanto pela actualidade, que descreveu como um avanço de toda a direita reaccionária, tipificada em certas personalidades do PSD, do que ainda resta do CDS e dos grupúsculos da extrema-direita, incluindo os que têm assento parlamentar. Desencanto que diz transforma-se em tristeza profunda por ver o Eanes associado à dita fantochada.
O que faltou dizer (Sousa e Castro não o poderia fazer) é que o 25 de Novembro liquidou por completo a Revolução que se seguiu ao golpe de estado protagonizado pelos militares em 25 de Abril de 1974. E ainda, que o processo revolucionário tinha proporcionado uma tipologia de poder paralelo ao poder de Estado, nos quartéis, nas fábricas e nas empresas, nos campos e nas casas, com o papel fundamental desempenhado por comités de fábrica, unidades colectivas de produção, comissões de trabalhadores, comissões de moradores e outros organismos de base.
Deturpa-se a história, tentando reescrevê-la, inundam-se as consciências com a narrativa pérfida do fantasma da “ditadura comunista”, pretende-se demonstrar que a liberdade só foi possível com o golpe de Novembro. O vício de raciocínio é de tal forma falacioso que, muitas vezes, são os próprios viciadores que ajudam a desfazer a própria narrativa. O 25 de Novembro é a consequência natural do triunfo da normalidade contra um processo revolucionário que foi um dos momentos mais altos do País, em termos de direitos, liberdade e garantias. A liquidação da Revolução de Abril. Até hoje, foi sempre a recuar.
Sobre quem colaborou no momento "folclórico de uma era bizarra", classificação de Joana Mortágua (BE), são ainda de salientar as palavras de Pedro Delgado Alves (PS), "não foi uma vitória da direita sobre a esquerda, foi uma vitória da esquerda democrática contra uma deriva sectária e radical”. Se ambos os Partidos considerariam não serem admissíveis “revisionismos, vontades revanchistas ou provocações”, pergunta-se, porque aceitaram participar, porque decidiram comparecer?
A comparência na AR é assim a demonstração pura e dura da realidade no nosso País, vergada à dominação da Direita e à mais triste servidão e submissão de todos os que, dizendo não a apoiar, lhe prestam veladamente tributo e vassalagem. É este, “dentro de mim... o mesmo pressentimento”.