23 fevereiro 2012

Zeca Afonso, a Voz da Cidadania

Viva a malta e trema a terra
Aqui ninguém arredou
nem há-de tremer na Guerra
Sendo um homem como eu sou
".
Canta camarada”, Zeca Afonso, 1969





Ousaste um dia dizer, O Povo é quem mais ordena, num tempo em a negra noite cobria Portugal e os cidadãos não tinham voz. E, em Abril, serias a bandeira que jamais renegaremos. Passados tantos anos, sabes que cantamos ainda contigo, na cidade que tem praças de palavras abertas, onde Não há céu de palavras/não há rua de sons que a palavra não corra/à procura da sombra de uma luz que não há. Ali, mais além há mulheres e homens que lutam, e tu, sempre presente para lhes dares a Voz que nunca tiveram, nunca terão, Quem dera que a gente tenha/De Agostinho a valentia/Para alimentar a sanha/De esganar a burguesia, sábias palavras, tão actuais quanto no tempo dos Índios, que na Meia-Praia moravam, ali mesmo ao pé de Lagos. Recordo os tempos em que te ouvi, em Coimbra, em caves, onde entravamos um ou dois de cada vez e donde saíamos por traseiras que acabamos por conhecer de cor. E, durante tantos anos de boa memória, não havia concerto digno desse nome, que não terminasse com a malta toda no palco, cantando a Terra da Fraternidade, uma Grândola de um Alentejo que produzia e que agora transformaram num deserto com gente. E se, um dia destes viermos gritar bem alto, Dum botão de branco punho/Dum braço de fora preto/Vou pedir contas ao mundo, será que alguém vai prestar contas da forma desastrosa como este nosso Portugal tem sido vendido ao desbarato? Tu avisaste, Mandadores de alta finança/Fazem tudo andar p´ra trás/Dizem que o mundo só anda/Tendo à frente um capataz, e aqui estamos agrilhoados a uma austeridade que exclui cada vez mais cidadãos e inverte completamente as promessas de Abril. Para eles, apenas um Redondo Vocábulo, para nós A fúria cresce/Clamando vingança. Contra os novos Vampiros, seremos sempre, como tu, Filhos de uma Madrugada, navegando de Vaga em vaga/Para não se apagar a chama/Que dá vida na noite inteira. Porque sabemos bem o que queremos, 25 anos que hoje cantamos, Cidade sem muros nem ameias/Gente igual por dentro/Gente igual por fora. Sim, a tua Utopia, Zeca: Toma o fruto da terra/É teu a ti o deves/Lança o teu desafio. Corramos com o Gastão que era perfeito/conduzido por seu dono e proclamemos: Já o tempo/Se habitua/A estar alerta
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Excertos: “Grandola Vila Morena”, “A Cidade”, “Os Indios da Meia-Praia”, ”Avenida de Angola“,  Redondo Vocábulo”, “Utopia”, “Canto Moço”; “Gastão era perfeito”, “Já o tempo se habitua


14 fevereiro 2012


Pára para pensar, ao menos para ler o que os outros pensam…
Do Livro dos Conselhos









Na cidade há um jardim para os namorados (1), com sabor a português e a mar, na doce e quente aragem da África profunda.  A subtil diferença entre “de” e “para” fica ao sabor da imaginação, neste dia em que as diferenças contam porventura mais que nunca. No dia em que convocamos Sofia, para atravessar com ela o deserto do mundo, Por ti deixei meu reino meu segredo / Minha rápida noite meu silêncio / Minha pérola redonda e seu oriente (2), um apelo vigoroso de entrega e de partilha. Será isto o amor, aquele sentimento que o Autor diz ser louco, porque sábio e o mais sublime que a alma pode alcançar (3)? No jardim pode-se namorar, sem ser piegas, uma moda posta em cena, por alguém insuspeito de se dedicar a coisas dessas, ocupado que está em nos levar para um mundo deserto, sem atravessar coisa nenhuma e sem a loucura surrealista dos anos 30. Que pena. Por nós, alinhamos com a pichagem de parede, algures para os lados do Principie Real, uma das pérolas da cidade do lado de cá. Um convite, uma tentação, uma provocação claro. Passamos de novo para o outro lado, onde faz calor quando cá nem por isso, convocando Viriato (4), ensinando um doce Namoro, Mandei-lhe uma carta em papel perfumado  / e com letra bonita eu disse ela tinha / um sorrir luminoso tão quente e gaiato…Aí Benjamim, quem não sabe, quando mandou recado pela Zefa do Sete, para ver se pegava. E não é que pegou mesmo, a gente sabe de cor… Do lado de cá, andámos porém tão atarefados, que nem reparamos a quem nos pisca o olho malandro, no autocarro ou no metro. Amai-vos porra!, pode ser o abanão que precisamos. A vida é nossa, porra!






(1) Referência ao Jardim dos Namorados, cidade de Maputo, entre o Miradouro e o Quartel General (Moçambique)
(2) “Para atravessar contigo o deserto do mundo”, Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto (1962)
(3) Referência a Andre Breton “O Amor Louco”, 1934
(4) Viriato Clemente da Cruz, poeta angolano



01 fevereiro 2012








Uma mão lava a outra,
o champô só lava cabeças. Duras, claro!
Do Livro dos Conselhos Inúteis




Com polvo e algum champô à mistura se vai fazendo justiça em Portugal. Uma verdadeira justiça de classe, não uma justiça com classe. Um octópode que se preza tem oito tentáculos ao redor da boca e não lava a cabeça. Um champô digno desse nome, tem marca, logotipo e vende-se numa loja da Baixa, pelo módico preço de 25 euros. Imagino um isaltino enredado nas pernas sebosas do polvo, fumando charuto e sorrindo de soslaio para o magistrado. Interpus recuso, diz o polvo, aliás uma providência cautelar para não ser cozinhado. Na peça, o champô transita do jaguar do autarca, para a bicleta do sem-abrigo. Roubada, claro. E, subtraindo o preço do quilograma do molusco, ao do mililitro do champô, obtemos o delicioso resultado, 100 dias de precária, mais as coimas e o lanche do defensor oficioso. E, somando a lata do polvo, já em conserva claro, à parvoíce declarada do funcinário de justiça, obtemos uma variável muito comum em Portugal: a puta que os pariu! A diferença entre o roubo do lavado molusco e o subtil desvio do isaltino é apenas uma questão de retórica. A vida continua entretanto, a luva branca e a cartola valem o que sabemos, o sem-abrigo é abaixo de cão e só mesmo o medo que se vai instalando, impede que alguém bem-intencionado um dia acorde mal disposto e faça uma asneira daquelas.

Para que serve abrir um ano judicial?

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