27 junho 2021

 VÍCIO INERENTE 

 

Com este magnífico título, o realizador norte-americano Paul Thomas Anderson, realizou,  quando tinha apenas 44 anos, um filme[i] que é especial, na exacta medida do misto entre a ironia e o ridículo. Atente-se na cena de “reposição” da "Santa Ceia" transformada em pizzada, o suficiente para desconverter o discurso do mítico sonho americano.

 

Há de facto vícios inerentes. Vícios que são privados, outros que foram há muito “nacionalizados” e assim se tornaram públicos. Tal como as possíveis virtudes, inerentes aos privados (vícios) que ora (não) abundam e deixam os seus mentores desapossados. A bem dizer.

 

Vem a rábula cinematográfica a propósito do discurso pífio da neutralidade. É, como todos os vícios, inerente ao estado de alma dos dirigentes que, a propósito de qualquer coisa que possa mexer em altos interesses, ou em discutíveis opções que os possam ferir, decidem ser “neutros”. Aos factos, respondem invariavelmente da forma mais mesquinha, ficando quietos e mudos, numa pertença posição, que de neutra apenas tem a hipócrita face do ilusório.

Do ministro Augusto não se pode esperar nada que não seja a cartilha gasta e putrefacta da mediocridade. Às utopias, diz nada, aos direitos quase nada, que não seja a linguagem politicamente condicionada pelos altos ditames de uma coisa que nem sequer existe, como o é, por exemplo, a “amizade” de amigos mal-recomendados.

De um governo que ocupa, a presidência da “coisa”, deveria esperar-se uma tomada de posição, ou, no mínimo, um alinhamento com a moção que condenava a mais descarada homofobia. Pois não. A invocação da neutralidade, em matéria de Direitos Humanos é a maior vergonha a que o País foi sujeito e demonstra, para além do evidente erro de palmatória, uma falta de nível tremenda, dando de barato ao infractor uma vantagem inequívoca.

Colaboracionismo. Esta é mesmo a única interpretação e classificação possíveis. Uma mancha indelével, para quem tem nas palavras e nos actos, a demonstração evidente do alinhamento mais descarado. 

 

Nada poderá “salvar” a indigência. Não se pode ser neutro, em matéria de Direitos Humanos. Nem o uso eventual de uma pesada droga, poderá justificar tamanho disparate institucional. Uma qualquer ilusão de querer “ficar bem”, cai na terra pantanosa da indiferença generalizada, a que mereciam ser “condenados”. Quem não sabe semear o pão, não merece comê-lo, diz a sabedoria popular, que é tudo menos neutra.

 

Quem está do lado “neutro”, está objectivamente do mesmo lado dos que tentam subjugar os outros, pelas ilusões de domínio e do poder fátuo da repressão. Está claramente a colaborar, no dito caso que é muito concreto, com a arbitrariedade e a repressão, está a colaborar na mais nefasta campanha pela Liberdade da pessoa humana, os seus gostos e a sua orientação, moral, social e sexual. Quem quer ser neutro, em matéria de Direitos Humanos, está a mostrar verdadeira face, abjecta sempre, do colaboracionista.

 

Na outra fita[ii], o herdeiro do trono austro-húngaro dedica-se à libertinagem e ao deboche, um sinal que lhe é “transmitido” e, de certa forma, permitido. Aqui não há liberdade, apenas a demonstração cabal do poder dos ricos e poderosos.

 

No filme de Anderson, o intérprete está sempre limitado, pela dificuldade constante de compreender o global, um vício”, “inerente” à sua própria condição. Na cena do ministro Augusto, o que torna o “vício inerente” não é decerto a incapacidade de ler e fazer melhor. É apenas e só a manifestação da falta de vontade política de lutar pelos direitos e pelas causas. Por defeito crónico de não querer assumir uma identidade própria. São pessoas meias-tintas, os ditos nem-nem, os que melhor atestam a sociedade do consumo imediato e de certa forma, de uma pobreza de espírito, que jamais os alcandorará a um lugar na História, pelo nítido desprezo a que devem ser votados.  

São a escala mínima do ser humano. 

 


[i] Vício Inerente” (2014), argumento e direcção de Paul Thomas Anderson, com Joaquin Phoenix, Josh Brolin, Jena Malone, Katherine Waterston, Owen Wilson, Benício del Toro, Maya Rudolph, Sean Penn, Reese Witherspoon e Martin Short

[ii] Vícios Privados, Públicas Virtudes (1976), direcção de Miklos Jancso, com Lajos Balazsovits, Pamela Villoresi, Franco Branciaroli, Teresa Ann Savoy, Laura Betti, Ivica Pajer.

 

 


20 junho 2021

 GEOGRAFIA DO SILÊNCIO


 

















Sabe-se que há silêncios mais eloquentes que palavras.

Guarda-se silêncio, por isto ou por aquilo, por vezes nem sequer sabemos porque o fazemos, tamanho é o espanto perante o que se passa à nossa volta, estranha realidade que se quer imiscuir no nosso quotidiano e nos perturba o dia a dia.

Direito a um silêncio que reputamos imprescindível, perante a vozearia que perpassa por todo o lado, num crescendo de tal forma violento, que parece querer destruir o pouco que ainda temos, de algum recato a que temos direito.

Pensamos aí, se ainda nos resta algum direito, que se pode resumir em simplesmente não querer mais. O direito de não querer saber. De não querer saber dos desastres, das tricas e das disputas, das hipotéticas desavenças, dos ditos “factos”, arquitectados em gabinetes de fala-baratos e profetas da desgraça.   

Se vantagens houve no mediatismo social das últimas décadas, eis que ora escapam por entre os dedos e confundem-se com a mexeriquice das tias das várias linhas, em mapas desenhados com mesquinhice e cretinice. 

Ouvem-se a eles próprios, convencidos que representam alguém, como se houvesse alguéns que queiram ser representados. Aliás, a suposta representação escapa e estingue-se, no momento preciso em que abrem a boca e vomitam estupidez, em forma de informação. Alguns até piscam o olho, num assomo supremo, misto de ignorância e ignomínia. Que lhes valha a tela que têm pela frente e os protege da ira popular, se ela existe e tem força, ainda que contida. 

 

Daí que o silêncio pode construir uma geografia eloquente, perante tanta falta de sabedoria. Assim, talvez venha a obter um estatuto, capaz de ombrear com tanta pequenez, moral e intelectual. Valha-nos a razão de não querer, assista-nos o direito de não alinhar. Haverá algures um mapa, ao qual a geografia presta contas, ainda que seja desenhado com uma qualquer geometria variável, onde caiba, pelo menos, a diversidade que nos querem subtrair, sob a forma recente da auto-proclamada “resiliência”. 

Iremos por aí, encontrando esta e aquele, tu e mais alguém que resista, recordando os tempos de uma noite triste, onde apenas havia escuro e perfídia. E, como o Poeta nos ensinou, “...há sempre alguém que diz não”, recusando em definitivo, toda e qualquer servidão. 

 

Apenas murmúrios, vindos de outras terras, relatam dores e prantos, por vezes invisíveis aos ouvidos. Respostas não existem, apenas um perplexo estado de mutismo, quiçá insensibilidade, perigo constante que espreita as sociedades que fazem do lucro e do consumo, o supremo estado de alma. 

Deixem vir até nós as vozes de quem tem algo para dizer, talvez um “...desafio pairando sobre o rio”. Talvez uma miragem...

 


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