23 agosto 2021

CARTA ABERTA AO MINISTRO JOÃO GOMES CRAVINHO

 

Porto, 23 de Agosto 2021

Senhor Ministro da Defesa Nacional do Governo da República,

Exmo. Senhor Dr. JOÃO GOMES CRAVINHO,

 

Ao Senhor Ministro da Defesa, me dirijo, por força do artigo de opinião, que publicou no DN do passado 18 de Agosto.

O Senhor é uma pessoa que bem conheço, dos tempos em que era SENEC[i] e eu desempenhava funções de Presidente numa ONGD, trabalhando também na Plataforma das ONGD e por quem manifestei, na altura, o meu respeito e alta consideração, pelo trabalho que desenvolveu, em prol da Cooperação e da Educação para o Desenvolvimento.

 

O título do referido artigo é elucidativo e quase diz tudo, “Duas décadas no Afeganistão ao serviço da paz e da segurança internacionais”. Na realidade, refere-se concretamente à presença portuguesa, ao lado das forças internacionais, a designada ISAF (Força Internacional de Apoio à Segurança). E refere ainda a RSM (Resolute Support Mission), que, segundo afirma, tinha como objectivo, “...a transferência da responsabilidade global pela segurança do país para as autoridades afegãs”(sic).   

Quanto à primeira (ISAF), é bom que se diga que foi uma força liderada pela NATO, classificada aliás pelo senhor Anders Rasmussen[ii], como “...a missão mais exigente que nossa Aliança já empreendeu” e sobre a qual disse, “... apesar de muitos desafios, e apesar dos contratempos ocasionais, estamos fazendo um progresso constante![iii]. E sobre a segunda (RSM), convém lembrar que foi formada a 1 de Janeiro 2015, para que a NATO pudesse conduzir “...uma nova missão, essencialmente de treino, aconselhamento e assistência, no Teatro de Operações do Afeganistão[iv]

 

Senhor Ministro, como pode dizer, que “...as nossas forças ofereceram um valioso e decisivo contributo para a paz e estabilidade na região”, quando a realidade demonstrou o mais rotundo dos fracassos, em toda a linha, quer quanto à “paz”, quer no reporta a “estabilidade”? Como é possível falar dessa forma, num momento em que os diferentes analistas e especialistas internacionais, são quase unânimes (finalmente) em afirmar que a intervenção no Afeganistão teve apenas como objectivo a tentativa de querer moldar (mais um) país, à sua imagem e semelhança, que (também infelizmente) não são um bom retrato para ninguém? Como pode ignorar que foi “apenas e só” uma ocupação de 20 anos, para deixar tudo na mesma ou ainda pior? 

Senão vejamos alguns números: 47 mil vítimas civis, 66 mil solados afegãos, 72 jornalistas e 444 trabalhadores de ajuda humanitária, sacrificados na guerra. Por causa desta guerra, o Afeganistão perdeu, em 20 anos, quase 3 milhões de habitantes, fugidos e agora refugiados e migrantes noutros países. Esta guerra de duas décadas, que matou milhares de soldados americanos, britânicos e de outros países (Portugal incluído), acaba por mostrar hoje, uma nação arruinada e perfeitamente desarticulada e que significou um custo calculado em mais de 2 mil milhões de dólares. 

 

Nem sequer o facto de terem sido resoluções das ditas nações unidas a ditar grande parte das “intervenções”, justifica agora esta profunda hipocrisia de americanos e “aliados”. A verdade é que o Império e o seu aparelho de guerra, a NATO, fugiram vergonhosamente, tal como em Saigão, no ano de 1975. E que o pretendido disfarce, não significa senão mais uma derrota estrondosa dos EUA e dos seus “aliados”. Entre os quais, está sempre e em todas as ocasiões, o nosso País, ou melhor, os governos do País (todos e sem excepção). 

Senhor Ministro, será que não consegue fazer um simples exercício crítico de memória, em vez da quantidade imensa de palavras que gasta na glorificação da guerra e no mais que evidente alinhamento com a versão oficial americana e da NATO? Ignora a devastação imensa produzida por uma guerra de ocupação, que, em vez de servir os propósitos que anunciou, aumentou o risco do terrorismo, no Afeganistão e no resto Mundo? Ignora o enorme arsenal de material e equipamento “oferecido” aos talibans, bem como todo um sistema informático de intrusão no domínio privado, que irá permitir aos talibans perseguir, decerto sem piedade, todos os que colaboraram? 

 

Senhor Ministro, será que não sabe, por exemplo, que o foi o primeiro dos presidentes promovidos pelos americanos (Hamid Karzai), que promulgou a lei xiita da família, em que era dado aos maridos o direito a forçar sexualmente as suas mulheres e que incluía a autorização do casamento de adolescentes de 14 anos? Como pode assim falar, no seu texto, em espezinhamento pelos talibans, de direitos das mulheres e raparigas, “esquecendo” o que fizeram pessoas como a que cito?

 

Senhor Ministro, aconselho-o a ler, na mesma edição do DN, o artigo da Susete Francisco, cujo título elucidativo é “Um “espantoso” erro de avaliação que não deixa Portugal incólume”. Talvez lhe avive a memória e o faça pensar em tudo o que escreveu. Remeto de novo para o título que escolheu, para lhe dizer, finalmente, que as duas décadas no Afeganistão, ao contrário de que afirma serem “...ao serviço da paz e da segurança internacionais”, foram ao serviço da guerra e da destruição, ao serviço dos ditames do império americano e dos amigos da NATO e demais “aliados”, que incentivaram regimes corruptos e outros interesses obscuros. E com os quais, o nosso País, o povo português nada tem a ver. 


Senhor Ministro da Defesa, a defesa que precisamos não é decerto a defesa que defende no seu artigo.

 

Os meus respeitos e melhores cumprimentos,

Alfredo Soares-Ferreira



[i] SENEC: Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, do MNE

[ii] Secretário-Geral da NATO, entre 1 de Agosto de 2009 e 30 de Setembro 2014 (Dinamarquês, ex-PM do seu país)

[iii] Citado por Domingos Rodrigues, “As Forças Armadas Portuguesas no Afeganistão”, disponível em: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/7645/1/NeD130_DomingosRodrigues.pdf      

[iv]  Texto de Augusto de Barros Sepúlveda, no Jornal do Exército, disponível em: https://eurodefense.pt/o-contingente-nacional-no-afeganistao-resolute-support-mission/           

                  

                  

 


06 agosto 2021

 A TRAIÇÃO DOURADA

 

O Homem que traiu o seu País, cousa vulgar, na história de hoje de sempre, tantos houve, ao longo dos tempos, inenarrável de tanta vulgaridade. Dir-se-ia que Brutus e Judas, exemplos habituais, haveriam de produzir excelentes exemplares da traição clássica.

 

O contrário já é mais rebuscado. De modo que, quando o Homem se sente traído e encontra razões para saltar dos seus, para a propalada Liberdade e o faz de forma tripla, buscando o aplauso colectivo, porque o ouro conquistou, a gente gosta. O País rejubila, porque afinal essa outra cousa é tão rara, que tem mesmo que se ir sempre à História, procurar idênticos feitos, neste e noutros séculos, desde que os olímpicos jogos são notícia.

Então vem o Presidente e fala, ele que tanto gosta de o fazer, por isto ou por aquilo, fala sempre. E, pelos vistos, a gente gosta, que sim, que sabe reconhecer e mostra que sabe do que fala. Diz ele que devemos prestar homenagem e a gente presta, e rende-se ao feito, porque é uma honra e mexe connosco, ouvir o hino e ver a bandeira subir, é sempre a lágrima incontida, mesmo que não ao canto do olho. 

 

Somos, diz-se, um País pequeno, ouvimos isto e sempre lembramos. E sempre lamentamos, porque, diz-se também, já fomos grandes, um imenso Império, onde, diz-se finalmente, um dia nos afundamos. Mas nunca esquecemos. Há países identicamente pequenos. Há um, por exemplo, do outro lado do mar, que já sacou até agora, nestes jogos, 6 medalhas de ouro, 3 de prata e 4 de bronze. E, pelo que rezam as estatísticas oficiais, ganhou já 226 medalhas, sendo 78 ouros, 68 pratas, e 80 bronzes, ocupando assim, a 3ª terceira posição entre os países das Américas, em relação a conquistas de medalhas de ouro (atrás apenas dos Estados Unidos e do Canadá) e conquistou mais medalhas do que qualquer país da América do Sul. 

 

Curiosamente, é desse País que falamos, e que, diz o medalhado, o traiu. Então, diz ainda o herói, “Em Cuba sou um traidor, mas eu já não sou cubano...”. Esquece o herói que foi o País onde nasceu que lhe deu as bases para que ora seja ouro? Sobre isso, sabemos nada, mas afinal o que é que isso interessa? O importante para ele, é que irá receber 50 mil euro, para além da liberdade que conquistou ao saltar de um país onde era, segundo alegadamente, um “traidor”. 

 

Para além da habitual romaria de vaidades, quando um atleta conquista uma medalha, ao serviço do País, fica a incrível falta de aposta nas modalidades olímpicas, situação que se repete sistematicamente. E, talvez por isso, somos “obrigados” a festejar cada medalha, como se fosse a última, porque a continuar assim, o lugar modestíssimo que o País ocupa, será eterno. 

Desta vez foi assim, amanhã pode ser na mesma. Afinal, não deverá haver assim tantos cubanos a querer saltar...


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