16 abril 2020

A “FRENTE” QUE FAZ FALTA


Esta poderá ser uma imagem da actualidade.
Comentadores e público em geral, uma representação da modernidade, que se assumiu como tendo alguma validade, quer no plano das ideias, quer no panorama político. Tal poderá configurar, no futuro, um relativo excesso de representação, em termos de análise social, deixando eventualmente de lado, franjas significativas da população portuguesa, que se sentem à margem de qualquer decisão, por terem aparentemente perdido representatividade, na sua essência.
A questão coloca-se sobretudo (agora) em tempos de crise.
Para a comunicação social, uma tremenda manipulação de consciências, mesmo admitindo que o inconsciente o sobrevalorize. Desde a última década do século XX, tem sido assim, ou seja, existe uma camada privilegiada que se arvora como consciência colectiva, tomando como adquiridas, determinadas asserções e projectando-as no inconsciente colectivo, tomando-as como válidas, exactamente porque o teriam sido, através de um processo complexo de desarticulação da informação, por um lado e, por outro lado, pela construção de uma memória presente colectiva, a que é estranha a concepção do “homem comum”. Contudo, autores como Walter Benjamin, atribuem uma importância acrescida a este pormenor, sobretudo quando afirma que o homem comum”, “...através de suas rememorações, traz uma contribuição fundamental para a desconstrução da versão oficial da história, relatada, com frequência, a partir do ponto de vista dos vencedores.”

A preparação da “normalidade”
Uma boa preparação implica a difusão pelos chamados meios de comunicação social, com uma equilibrada difusão de “fóruns de opinião” e inquéritos colocados às massas. Começando pela chamada informação, ela é rigorosamente organizada, de molde a constituir uma representação da realidade, através da repetição de meia dúzia de frases feitas, de opiniões de comentadores que não são especialistas de coisa alguma, mas que opinam sobre qualquer tema, com a ligeireza que lhes foi “ensinada”, e que invariavelmente constituem a dita “opinião pública”. Que é construída de cima, fabricada portanto e devidamente registada como válida e confirmada. De quando em vez, é notório, em alguns desses fóruns de opinião, uma ou outra voz, que se levanta contra, de uma forma primária e que é devidamente “arrumada”, no contexto global. Falar muitas vezes que a “a situação voltou à normalidade”, faz com que tal seja verdadeiro, mesmo que, no terreno, nada disso corresponda à realidade. 

O falso dilema entre Saúde e Economia
A discussão que se pretende colocar, em termos de comunicação social é, entre dar prevalência à Saúde ou à Economia, como se fosse possível equacionar as coisas desta forma. Em primeira instância, dir-se-ia que, primeiro devemos curar todos os doentes e depois (só depois) nos centrarmos na questão da Economia. Claro que colocar as questões desta forma, não é, uma vez mais, inocente. Destina-se, este tipo de “análise” a induzir de novo o medo na população. 
Claro está que uma das obrigações do Governo, é governar.
E governar, será em primeira instância, determinar exactamente os timings devidos, acertando, entre cidadãos e empresas, as melhores formas de “retomar” as actividades económicas. O que determina uma coisa muito importante que é, a urgência (que já devia ter sido, no mínimo, há um mês atrás), do uso obrigatório de máscaras de protecção. Sem isso, nunca poderá existir segurança das e para as pessoas. Esta falha, que teimosamente continua, é um espelho do relaxe e uma contradição absoluta do “estado de emergência”, que apenas e só existe, para determinar restrições aos trabalhadores, menos uma protecção a que o Estado está obrigado.
Vista a situação actual, com uma certa frieza, diria que a ordem para o confinamento geral, se deve, única e exclusivamente, à incapacidade manifesta de resposta imediata, devido à sistemática e progressiva liquidação do Serviço Nacional de Saúde, quer pela sucessiva recusa de investimento, em infra-estruturas e materiais (máscaras, gel desinfectante, viseiras, testes de despistagem, ventiladores e outro), quer ainda por aquela que deveria ter sido a primeira medida a tomar: a requisição imediata dos hospitais privados. Esta responsabilidade deve ser unicamente imputada a este Governo e a todos os anteriores.
Não deixa de ser manifestamente ridícula, a posição das 2 Responsáveis da Saúde (Ministra e Directora-Geral), sobre o uso das máscaras, praticamente 1 mês depois da pandemia estar “confortavelmente” instalada, quando já eram suficientemente conhecidas experiências a provarem que aquele uso era absolutamente prioritário. Vejam-se por exemplo, para citar apenas estes, os exemplos da Coreia do Sul, de Singapura, da República Checa.
Sintetizando a questão actual, a declaração de João Oliveira do PCP, é elucidativa, “As medidas de contenção são necessárias, o estado de emergência para as impor é que não.”[i]


E, por falar em Economia 
Sobre a questão de um eventual colapso da economia, a nível interno, existe já um cálculo para o abaixamento do PIB nacional, uma queda de 11%, na previsão de Francisco Louçã, de há uma semana, ou 8%, segundo notícia de 14 Abril, do FMI, mais 380 mil desempregados.
Então o que vai acontecer agora daqui por alguns meses (1, 2 ou 3, ou mais), quando for necessário tomar medidas? Para os comentadores habituais do sistema, serão sempre “medidas excepcionais”, a questão centra-se em quem as irá tomar. Um governo de um bloco central? Um Governo da “Salvação Nacional”, que curiosamente salta sempre para cima da mesa e questão é sempre colocada de uma forma conservadora, uma vez que parte dos princípios erróneos, “não há dinheiro”, “não existem condições para garantir a todos...”, “...agora haverá consequentemente menos dinheiro”, etc...., A lógica deste tipo de argumentação baseia-se sistematicamente num dado, pelos vistos adquirido, de que haverá menos dinheiro para mais pessoas, uma vez que o bolo é o mesmo.  A consequência conhecida deste tipo e análise é obviamente a necessidade de cortar pensões e salários e reduzir as prestações sociais. Segue-se a falta de dinheiro para os sectores fundamentais do Estado Social, o SNS, a Escola Pública, os transportes e por aí adiante. Esta análise, simplista e propositadamente enganadora, não resulta apenas de uma manifesta falta de visão de política estratégica, mas sobretudo da limitação decorrente da incapacidade de equacionar qualquer cenário que se apresente como alternativo. Quer a nível da própria metodologia de análise, que no que reporta aos dados concretos da economia portuguesa. Claro que, ao referir-se a possibilidade (ainda que remota) de uma hipotético bloco central, está automaticamente a excluir-se (de novo) a Esquerda de sequer desempenhar o seu papel, pelo menos na definição de Poder.

Mas a questão (da Economia) não é só nacional
A nível da chamada união a nível da chamada “união europeia”, os condicionalismos a nível do não entendimento Norte-Sul, a nível de saber qual será a posição de Alemanha, de qual será a posição da Itália, uma economia “interessante” para os desígnios do mercado europeu, os enredamentos habituais nestas circunstâncias, com múltiplas e desencontradas intervenções de burocratas e eurocratas, ao serviço da propaganda oficial, dos convénios e dos tratados, das idiossincrasias dos mercados (vistos aqui como pessoas concretas, sujeitas a boas e más disposições de momento), das condições e contradições sobre o tratamento das dívidas soberanas. A suprema ironia da ajuda de Cuba a Itália, demonstra bem a completa inutilidade da chamada “união europeia”, que entretanto se vai perdendo em jogos florais, nas ultimas semanas, para culminar em mais um “acordo” no grupo de burocratas ministros das finanças, conhecido como eurogrupo, que consiste na  “...abertura de uma linha de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) num valor equivalente a 2% do PIB, para que os países possam financiar medidas “directa ou indirectamente” ligadas ao sistema de saúde é a peça central do acordo obtido esta quinta-feira pelos ministros das Finanças da zona euro.” (Jornal Público, 9 Abril 2020). Claro está, com condições associadas, que têm a ver, com a obrigatoriedade do cumprimento das regras orçamentais europeias, bem como a aplicar o dito financiamento, apenas para o fortalecer a resposta do sistema de saúde.
Nada de novo, antes pelo contrário, na “resposta europeia”, que apenas irá, ao contrário do que dizem Costa e Centeno, provocar, mais cedo ou mais tarde, a austeridade conhecida. Dado que, na perspetiva da Alemanha e dos seus satélites do Norte, serão sempre as economias nacionais a pagar o empréstimo, desde que lhes estejam associadas as convenientes restrições, que nem precisam de estar escritas à partida, uma vez que derivam das regras de funcionamentos do euro e dos tratados e convénios, na sua grande maioria, não ratificados pelos Estados Membros.

A falta de uma verdadeira estratégia 
A questão de saber, uma pergunta sistemática e propositadamente feita aos cidadãos, se o Governo está a actuar bem e em tempo, é falaciosa, por duas razões. A primeira, porque compete de facto ao Governo tomar as medidas adequadas e em tempo. A segunda, porque os cidadãos não dispõem dos dados suficientes para responder. E então, das duas, uma. Ou respondem que não, por razões que ultrapassam a questão principal, ou dizem que sim, porque não encontrar motivo suficiente para dizer não. 
E depois, nestas questões de segurança e gravidade nacional, não é nada avisado alinhar com aqueles teses (muito difundidas, aliás) que tentam convencer as pessoas que isto é “...uma doença que toca a todos por igual”,  é “...uma crise que toca a todos por igual”, que “...temos que nos unir perante a ameaça do vírus”, e outras do mesmo género. Que correspondem afinal às teses de certos autores que proclamam constantemente, quer a hecatombe, quer a passividade, mais ou menos completa (ou complexa). 
Nesta linha, que chamo de “passividade activa”, Harari[ii] escreve há dias uma autêntica proclamação, “A humanidade precisa fazer uma escolha. Iremos percorrer o caminho da desunião ou adotaremos o caminho da solidariedade global? Se escolhermos a desunião, isso não apenas prolongará a crise, mas provavelmente resultará em catástrofes ainda piores no futuro. Se escolhermos a solidariedade global, será uma vitória não apenas contra o coronavírus, mas contra todas as epidemias e crises futuras que possam afetar a humanidade no século XXI.” Isto analisado, mesmo sem ser à lupa, quer dizer, absolutamente zero, uma vez que parece desconhecer a situação de perfeita guerra surda, por exemplo, na dita “união europeia”, que demorou duas semanas a parir um pacote que significa menos que nada, perante a calamidade prevista (até pelo próprio FMI).
Mas diz mais, parecendo que vive noutro planeta, “Um país rico com poucos casos de coronavírus deve estar disposto a enviar equipamentos preciosos para um país mais pobre com muitos casos, confiando que, se e quando, posteriormente, precisar de ajuda”.
Esta “linha” de pensamento não acrescenta coisa alguma, apenas serve para tentar convencer os cidadãos que está tudo bem e que, mais dia menos dia, cairá de algum céu perto de si, a solução de solidariedade milagrosa, em que parecem acreditar. Claro está que se uma qualquer esmola significativa vier a surgir, então o problema dissolve-se, pelo menos na mente de quem a defende...

Preciso é preparar cenários...
De facto, é mesmo o que parece faltar.
A maioria dos partidos Políticos portugueses não tem, ou melhor não parece sequer querer, a mínima noção do que deve ser um Programa Mínimo de alternativa, para encontrar respostas para a situação presente. Da Direita, considerada como “representada” por PSD, CDS, PAN e IL, aquilo que se conhece é, mais ou menos disfarçadamente, o apoio mais ou menos consensual ao Governo, com variantes interessantes, que apenas têm a ver com o desejo de aproveitamento político, aqui com especial relevância para o PSD. O PS e o BE, cada vez mais parecidos, apesar dos discursos serem aparentemente diferentes, resultantes da necessidade de alimentar bases ideológicas distintas, o que leva, por exemplo, o BE a apresentar medidas e propostas correctas, numa situação normal e que mais parecem perdidas na conjuntura que atravessamos. A justificação prende-se com a falta de visão estratégica do BE, para a questão europeia, que naturalmente “tolhe” os movimentos da maioria das suas intervenções. Resta o PCP, o único partido político em Portugal, como uma visão clara sobre a questão europeia, mas que não tem (a visão) o peso suficiente para alavancar uma posição ampla de defesa da soberania e de repúdio completo das normas, tratados e convénios da dita “união europeia”. 
Escrevi, em artigo de 13 de Abril [iii], “Se porventura o Governo da República nos viesse dizer que iria apostar num plano de agricultura sustentada, num plano de industrialização consequente, que iria optar por uma diminuição da dependência externa, reformulando alguns circuitos de distribuição. Se finalmente nos viesse anunciar um plano de pleno emprego, subsidiado pelo Estado, combatendo assim, de forma eficaz, a miséria e a exclusão. Se porventura ainda pudéssemos dar algum crédito a quem nos governa, pensando: bem, esta administração tem algumas boas ideias, valerá a pena conceder-lhes um benefício de dúvida. Se ainda nos viessem dizer que iam desenvolver todos esforços por lutar, por exemplo, com a Espanha, a Itália e a França, no sentido da anulação dos tratados odiosos e ainda de equacionar a aquisição da soberania que nos falta e que nos foi indignamente retirada, então diríamos, vale a pena juntar a nossa voz, porque nos estamos a proteger e a cuidar particularmente daqueles que nem voz têm para falar, tão fraca é a sua condição.”
E é aqui precisamente que nos encontramos. Entre a escolha, que tem que ser feita, de o nosso País continuar a ser um protectorado da Alemanha e a recuperação completa da soberania, fora da EU e fora da moeda única, única forma de o País poder emitir moeda, para responder de imediato à crise e para proteger os cidadãos, os seus salários, as suas pensões. 
A ilusão pode ser, como sempre é, fatal. As classes mais desfavorecidas da sociedade portuguesa, os trabalhadores, os pequenos comerciantes e industriais, não se podem (nem devem) iludir com a “teoria geral do confinamento”, com os remendos habituais e as esmolas que aí virão. No final, irão receber a factura, após o colapso das instituições e, a seguir este caminho, do próprio Estado Social.

Este pode ser o momento.  
Primeiro para proceder a uma correcta interpretação, porque todas as crises comportam, ou devem comportar, uma adequada e sistemática interpretação. Que estará a ser feita, mas nunca, ao que parece, a nível dos responsáveis pela administração do Estado.
Para incentivar uma comunidade de cidadãos, com um programa apoiado em bases concretas, tendo como prioridade a análise da dívida e a sua imediata restruturação, bem como o estudo de uma alternativa nacional, para readquirir a soberania perdida. 
Uma Frente, para fazer frente (assim mesmo) à situação actual, que deveria exigir, para já, ao Governo actual:
·      um levantamento da capacidade produtiva do país de forma a identificar, no plano da agricultura, do pequeno comércio e particularmente da distribuição, as empresas que podem contribuir para a produção dos produtos e materiais necessários, ao funcionamento do País, em situação de emergência;
·  um plano de triagem da população, que permita por um lado a identificação dos casos de risco sério e, por outo lado, em colaboração com as Cooperativas, Associações, e outras Organizações privadas sem fins lucrativos, a inventariação de todas as actividades necessárias aos cidadãos, incluindo a questão médica e sanitária, em primeiro lugar;
· um plano imediato de protecção do emprego, com proibição dos despedimentos;
· um plano imediato de protecção da habitação, sobretudo para aqueles que têm encargos na banca e perderam o emprego;
· nacionalização imediata de todas as empresas estratégicas para a actividade do País, desde a industrialização à comercialização, passando naturalmente por todos os circuitos de distribuição, incluindo transportes, comunicações, rede eléctrica e sanitária.
Essa Frente, deverá incluir naturalmente os Partidos Políticos, que acordem com aquelas e outras linhas mestras necessárias à resposta. 
Apenas 5 pontos, muito simples, muito directos, a que terão que se adicionar muitos mais, de forma a contribuir para a definição de uma Estratégia. 
Não parece ser difícil a concordância com aqueles pontos.
Este não é o discurso vazio do “...daqui para a frente, tudo vai ser diferente”.
Mas na realidade, se a emergência causada pelo vírus poder contribuir para alguma coisa, que o seja para uma significativa mudança de atitude. 

Alfredo Soares-Ferreira
16 Abril 2020




[i] Declaração sobre o Estado de Emergência, votação na AR de 16 Abril 2020
[ii] Yuval Noah Harari, professor de História, na Universidade Hebraica de Jerusalém.
[iii] Blogue Rio Torto, in: https://alfblogue.blogspot.com      

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