22 novembro 2015
A ESPERA
“…Sofre
mais aquele que espera sempre
do que aquele que nunca esperou ninguém?...”
Pablo Neruda
Numa altura em que se
espera pela decisão presidencial e se tenta perceber a razão da demora, passam
as notícias pelas misérias de uma elite atabalhoada e presa ainda pela surpresa
e pela vaga que emerge de uma nova relação de forças. Todavia, eles não
desistem, como se fossem senhores de tudo e de todos, disparando para todas as
direcções, na tentativa vã de manter privilégios e poderes mais ou menos
ocultos, donos que se julgam até de algumas consciências. É verdade. E funciona,
pela astúcia, pela intimidação e pela vil arma da mentira descarada e
despudorada. Todavia, se achamos normal que os senhores do poder e do dinheiro,
estrebuchem com a hipótese do governo das Esquerdas, espantamos com opiniões
colhidas e ouvidas, aqui e ali, de cidadãos anónimos que reproduzem, quais
papagaios amestrados, as mesmas frases, as mesmas estafadas alarvidades, para
além dos mais despudorados ataques a inteligência, vomitando ódio, nos fóruns da
rádio e nas redes sociais. Pergunta-se o porquê e mais não se vislumbra a não
ser a mais completa lavagem ao cérebro que há memória no nosso País, levada a
cabo pela Direita reaccionária. E que, sob a forma de avantesma, como lhe chama
J. Pacheco Pereira, “…aparição de uma
pessoa morta, pessoa ou objecto assustador, disforme ou demasiado grande”[1],
parece ensombrar ainda o panorama político, ou pelo menos a cabeça daquelas e
daqueles que se deixam ensimesmar.
O problema principal
é que esta gentalha decide e faz o que bem quer e parece não haver forma de
lhes travar o passo. Parece mais uma inevitabilidade, que aliás sempre foi bem
tolerada em Portugal: mesmo sabendo que roubam, “eles roubam todos, são todos iguais, portanto mais vale deixar ficar lá
estes, do que outros…”. Um dos melhores exemplos de roubo é o negócio de
venda da TAP, conforme vem espelhado no Jornal Expresso, onde se pode ler “Cabe ao Estado português, ao abrigo do
acordo entre a Parpública e os bancos, assumir o risco de incumprimento da
dívida da companhia aérea portuguesa, À banca é mesmo conferida a prerrogativa
de renacionalização da TAP. Estão em causa 770 milhões de euros”[2].
Um outro exemplo, também deveras elucidativo é o da hipotética “devolução” da
sobrecarga do IRS, que agora se verifica ser zero, quando na véspera das
eleições andava pelos 35% e serviu desta forma para angariar mais alguns votos,
bastantes decerto. E se neste caso da sobretaxa, a Direita fez o mesmo durante
4 anos, ou seja, mentiu descaradamente ao País, sobre os números da execução
fiscal, para tentar mostrar um paraíso que lhes desse (e deu, de facto…) votos e
tal configura aparentemente apenas um pretexto para o julgamento político, já o
caso da TAP, configura para além desse, uma eventual possibilidade de
julgamento criminal. Lendo a notícia do Expresso, “As negociações de última hora deram aos bancos a segurança de que, se
for necessário, o Estado repõe a garantia pública à dívida bancária”,
sublinhando ainda que “em causa estão
quase 770 milhões que euros, que incluem uma dívida bancária de 646,7 milhões e
120 milhões adicionais pedidos pelo consórcio comprador para o financiamento
corrente”. Então, na base destas afirmações, competirá ao Ministério
Público instaurar o respectivo processo-crime contra o Secretário de Estado que
conduziu as negociações. Ou será que só existe um caso no País de delapidação
dos bens públicos, ainda assim eventual? Os recentes chumbos e outras chamadas
de atenção do Tribunal de Contas indiciam claramente eventuais irregularidades
e até fraudes em praticamente todos os negócios efectuados pelo Governo,
designadamente nas diversas privatizações.
Se tal não bastasse
para (re)definir esta Direita, ela aí está na verdade dos factos, a
indesmentível prova que se mete pelos olhos dentro. É só mesmo preciso estar atento
e ler os sinais. O Presidente em exercício é hoje a cara dessa Direita, ou
melhor de uma certa facção partidária, exercendo os seus últimos dias no cargo,
com um desplante completo de desprezo pelas outras forças partidárias e,
obviamente por um País na sua plenitude. Ainda que definitivamente morto, mexe
ainda, sempre para o mesmo lado, assustando assim os portugueses e ajudando
objectivamente toda a desestabilização, provavelmente para semear uma qualquer
solução autoritária, bem ao seu perfil e gosto pessoais.
Mas há, felizmente,
pessoas atentas. Ao assinalar a passagem do Dia Internacional para a
Erradicação da Pobreza e dos Sem-abrigo[3],
o economista Carlos Farinha Rodrigues responsabilizou o actual governo pelo
agravamento da pobreza em Portugal e alertou que mesmo havendo uma mudança de
políticas, o país vai demorar "muitos anos" até conseguir reparar os
danos causados. Na opinião deste economista, “… mesmo que haja uma inversão das actuais políticas e mesmo que o actual
Governo seja substituído por outro disposto a combater a pobreza e a exclusão
social, vai demorar muitos anos até reparar os danos que ocorreram durante
estes três ou quatro anos". Este é seguramente o caminho do futuro
governo que se espera e, se a espera desespera, saibamos no mínimo, estar
conscientes que a solução das Esquerdas seja seguramente sólida para conseguir
inverter o rumo.
15 novembro 2015
O NOVO DISCURSO
“O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível …”
aonde o puro pássaro é possível …”
”Homem de Palavra(s)”, Ruy Belo
11. Eles
são o passado…
“Os que entendem como eu/as linhas com que me escrevo/reconhecem o que é
meu/em tudo quanto lhes devo”[1],
lembro o Ary e como tal me confesso (salvo seja!) feliz e de certa forma grato,
com os últimos acontecimentos que irão decerto proporcionar ao nosso País um
clima diferente, diria até, antagónico com o que antes nos dominava e oprimia.
Porque, é preciso
dizê-lo sem quaisquer rebuço, esta gente que agora se fina, sem a mais pequena
nota de dignidade, vive ainda no estertor da mentira e da manipulação
grosseira. Incapaz de compreender, incapaz de aprender, incapaz de comunicar, a
não ser com um discurso passadista, balofo e parolo, perfeitamente ao nível do
defunto de Santa Comba, incarnado agora pelo inquilino de Belém que, mesmo na
recta final do seu triste e cinzento mandato se arvora no direito de aconselhar
e ditar regra, no mais acabado exemplo de uma mediocridade assustadora.
É bom que se diga o
que esta gente menor representou no nosso País, a quem retirou soberania, às
claras. Personagens sem qualquer currículo relevante que não seja a passagem
por postos-chaves subtraídos à custa de prebendas e outras sujeiras. Uma elite
vergonhosamente antidemocrática e manipuladora. E suja, com as mãos cheias de
pobreza. Castradora das consciências. Antipatriotas, vendidos ao capital e aos
interesses internacionais que nada têm a ver com o nosso País, a não ser pela
vontade de pilhagem constante e permanente. Capazes de tudo para devolver aos
ricos o que roubavam aos mais pobres. Incapazes de compreender a infelicidade,
incapazes de dialogar a não ser com eles próprios. Capazes de roubar até as
pensões de sobrevivência dos mais pobres, na mais despudorada vergonha de que há
memória, indo até ao ponto de se vangloriar por ir para além da troika, na
defesa da famigerada austeridade expansionista, um conceito negado na prática
por uma pobreza que chega aos 20% da população e com uma dívida que não pára de
aumentar, exactamente a segunda maior dívida pública em comparação com o PIB
(128%) logo a seguir à Grécia (174,9%)[2]”,
22. Como
eram e ainda são sustentados
O que se tem visto na
comunicação social é do mais rasteiro possível. Algumas e alguns jornalistas
que entrevistam ou simplesmente falam com políticos de esquerda, colocam as
mesmas questões que a Direita engendra. O discurso é sempre o da justificação
de uma situação, quase sempre derivada das condicionantes do discurso da
Direita. As mesmas questões, a mesma argumentação, os mesmos chavões (“afinal
quanto custa”, “mas não há dinheiro”,…). Os comentadores, a quem foi
sistematicamente dado o “poder” de perorar sobre tudo, emitindo opiniões
pretensamente baseadas em uma hipotética sabedoria de centro, estribada em
consensos pré-definidos, enchem as páginas dos jornais, aparecem nas rádios e
nas televisões, juntos ou isolados, senhores de uma razão mais que balofa,
tentando construir cenários que desaguam sistematicamente na mesma lógica.
Sendo que o papel que
os meios de comunicação desempenham no quotidiano das pessoas, como promotores
e difusores de ideias e valores na sociedade contemporânea é por si mesmo relevante,
não deixa de ser preocupante que exista no momento presente um perigoso
movimento de doutrinação permanente, por vezes nos limites da decência.
Senão vejamos. Foi a
propaganda constante e sistemática, concebida e trabalhada com as empresas de
sondagens, que levou a coligação de Direita a obter um score de 38%, com base na repetição sucessiva do conceito “…estamos agora melhor que antes”, de
carácter fascistóide, enquanto que o País ficava cada vez mais atrasado e
desigual. Foi e ainda é a repetição exaustiva da tese “…não há dinheiro” que justificava sempre os sucessivos golpes no
Estado Social e na Escola Pública e que é ainda utilizada como inibidora a qualquer
ideia ou proposta de desenvolvimento do País. Existe hoje um conjunto de indivíduos
de estatura, no mínimo mediana, que pululam na comunicação social, saltitando
entre redacções de jornais e estações de rádio e de televisão, formados no lume
brando da mediocridade e que parecem dominar o espaço mediático, que aliás
partilham com a espécie política do centrão, agora posta (finalmente) em causa.
São, como bem os define António Guerreiro, “… os escritores subalternos, os animadores da televisão e os
profissionais da idiotice impressa ou teledifundida, munidos de um vasto
arsenal de instrumentos, que se tornaram os grandes mediadores. É através deles
que se acendem as discussões políticas, ideológicas, culturais, à medida do
exíguo espaço mental e da lógica do fait
divers de onde nasceram”[3].
É dramático que não
exista ainda em Portugal um órgão de comunicação social de Esquerda. Um
contraponto mais que necessário, a definição, teorização e consolidação de uma
estratégia de resistência, conceito agora ainda mais importante, numa altura em
que se perfila um governo apoiado por toda a Esquerda parlamentar e que se
impõe defender contra os interesses instalados. Uma necessidade sempre adiada,
agora mais que evidente.
33. Escolhamos
as palavras
Podemos agora dizer
as palavras que andavam arredias, porque não há céu delas que a cidade não
cubra[4].
Dignidade, a reconhecer de novo. Conhecimento, a sustentar o Desenvolvimento.
Podemos agora descobrir a esperança e glosar o entendimento. Queremos também
protagonizar a Mudança. Não é simplesmente o facto de virmos a ter um governo
de esquerda que nos deve satisfazer. É, isso sim o mais importante, a
circunstância de fazer parte e de trabalhar para que exista a mudança. Fazer
parte, é integrar conhecimento, é difundir e disseminar a democracia, através
da participação. Como afirma José Goulão “…A
nova realidade política em Portugal é dominada por gente séria, que sabe o que
quer para o país, que põe os portugueses acima dos negócios, que finalmente
privilegia o que a une sobre o que a divide, que preza a soberania nacional.
Toda uma situação que tem um potencial único para travar e começar a inverter as
consequências trágicas da política de caos, desmantelamento e parasitismo a que
os portugueses, com excepção das minorias servidas pelo governo cessante, têm
estado submetidos.”[5].
Esta é a oportunidade
para virar a página. Não só da austeridade, mas também do discurso político. Trazê-lo
para perto dos cidadãos, falar das pessoas e dos seus problemas, conceptualizar
a diferença na diversidade. Dizer a verdade, identificando os problemas e
propondo soluções, com respeito pelos cidadãos. Fazendo da politica uma actividade
nobre e digna, no palco de uma República a reconstruir.
[1] Excerto
de “Poeta Castrado, Não”, in “Resumo”
Lisboa, 1973.
[2]
Entrevista a Agência Lusa do presidente da Cáritas
Portuguesa, Lisboa, 24 Abril 2015
[3]
Extracto do artigo “A cultura é dos
subalternos”, António Guerreiro, Público, 13 Novembro 2015
[4] Referência ao poema “A Cidade”, José Afonso
[5]
Extracto
do artigo “Unidos como os dedos da mão”,
José Goulão, Mundo Cão, 8 Novembro 2015
09 novembro 2015
O DISCURSO - 3
“…Se
esperas pelo dia claro, deixa sempre a janela aberta...”
Do Livro Dos
Conselhos
Há razões para termos esperança?
Socorro-me da
interrogação de Teixeira da Mota(TM), desabafada no Jornal Público da passada
6ª feira. Embora a reflexão que é produzida não mereça a mínima credibilidade,
vale a pena constatar o discurso, “…Neste
momento em que o nosso país está sob a ameaça da instauração da ditadura do
proletariado, em que as hordas do bolchevismo já não são uma ameaça no
horizonte mas uma realidade facilmente constatável, em que o único partido que
constituía um dique ao avanço dessas forças dissolventes e antipatrióticas já
se encontra capturado pela esquerda radical…”[1],
para perceber do que é capaz quem quer analisar … a liberdade de expressão na
Finlândia. Como consequência do discurso produzido, TM declara do alto da sua
menoridade, “…vem aí a legalidade
revolucionária, os códigos serão rasgados, os contratos não serão para cumprir
e os fins revolucionários justificarão todos os meios”. Embora com um
formato em que se mistura o virulento e o patético, é este o discurso da
intimidação e do medo que nos foi passado durante os últimos 4 anos, ainda por
cima a pretexto de uma política de saque e de ataque à dignidade pessoal e
profissional de cada um de nós. Alinhando pela via ansiolítica da esperança
deste senhor, estão ainda (pelo menos) outros dois articulistas. Vejamos o que
nos transmite Sousa Carvalho, na sua sapiência de táxi, “…o PCP e o Bloco de Esquerda deram a António Costa um automóvel para
conduzir que só tem acelerador, mas não tem travões. Se for preciso austeridade
para consolidar as contas públicas, o país vai capotar, porque o acordo à
esquerda não admite austeridade sobre salários, pensões e impostos. É por isso
que os comunistas mostram grande resistência em integrar um governo PS”[2].
E finalmente, este maravilhoso exemplar, de fino recorte literário, do senhor
Alvim, “…Agora e com a cumplicidade
activa de um candidato a primeiro-ministro socialista derrotado de forma
eloquente nas eleições legislativas, um país incrédulo e que quer avançar vê-se
remetido à força e antidemocraticamente para uma espécie de putativa convenção
da Internacional Comunista, aplaudida de pé pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP”[3].
Com tudo isto, bem poderia dizer-se que só faltou, nesse dia, a sempre avisada
crónica do Pulido Valente[4],
para rematar tanto ódio e tanta cretinice junta. Num dia, assinala-se em que
Francisco Assis publica o seu “pensamento” sobre a matéria em questão, a
saber-se, a hipotética formação de um governo das Esquerdas.
Será que é de equacionar
uma tremenda e intrincada contradição entre liberdade e moral neste tipo de
discurso? Se atentarmos a Kant, para quem o exercício
da liberdade em sua plenitude é inseparável do conceito da moral, poderemos
ter parte da resposta. Todavia é a elaboração de uma justificativa racional[5]
que fundamenta a validade objectiva de
enunciados, que, segundo Habermas, consubstanciam determinados padrões
dominantes. Aqui se poderá então encontrar um paradigma constante em
praticamente toda a retórica da direita, neste momento, sem qualquer dúvida,
histórico, em Portugal, e nesse tremendo equívoco que será a Europa dos dias
que correm.
É com alguma
expectativa que aguardamos o final da tarde de Domingo. Chegam as 7 da tarde e
sabemos já da posição do Comité Central do PCP, relativamente ao acordo para um
Governo do Partido Socialista, para uma legislatura. Um desfecho mais que
previsível, a que as declarações de Costa e Jerónimo, só vieram confirmar, acima
de tudo pela afirmação mútua de esforço, muito trabalho e muita seriedade.
Então, como evidente
se torna, a resposta a pergunta inicial, ganha agora uma nova dimensão. Não só
há razões para termos esperança, como há esperança que uma nova razão emirja da
sujidade e obscurantismo com que nos brindaram estes últimos anos. O discurso
tem forçosa e obrigatoriamente de mudar. Para que se torne possível, viver
melhor, sonhar um pouco também, descobrir que há motivos para participar na
vida política, por uma democracia efectiva, pela dignidade amordaçada, pelos
direitos espezinhados.
Poderíamos ainda
dizer que, contra ventos e marés, valerá a pena desfrutar do momento. E lembrar
o Almada, para quem as pessoas que mais admirava eram precisamente aquelas que
melhor divergiam da sua pessoa.
Há razões para termos esperança!
É uma afirmação.
Libertada no dia em que se sabe que tudo pode ser diferente, que não estaremos
já capturados pela inevitabilidade. Que podemos de novo olhar em frente e
vislumbrar um pouco de luz e de cor. Poesia? Sim, decerto, com certeza!
[1] Retirado do artigo “A
liberdade de expressão na Finlândia”, por Francisco Teixeira da Mota, Jornal Público de 6 Novembro
2015, pág. 47.
[2] Retirado do artigo “A
diferença entre um programa e uma resma de papel”, por Pedro Sousa
Carvalho, Jornal Público de 6 Novembro 2015, pág. 48
[3] Retirado do
artigo “O governo de Portugal é dos portugueses”, por Miguel Alvim,
Jornal Público de 6 Novembro 2015, pág. 48
01 novembro 2015
O DISCURSO – 2
“…Se, reproduzindo o discurso alheio,
a gente
o altera tanto
é
porque não o compreendeu..”
Goethe
1. Vale
a pena ainda dizer
Vale a pena analisar, debater e porventura
guardar as palavras ditas e escritas que, por estes dias, têm sido produzidas,
muito ao sabor das circunstâncias.
Rompe-se o silêncio na sociedade civil.
Destrói-se o incrível muro, erguido diga-se de passagem pelos próprios, de um
pretenso “arco de governação” em Portugal. Que deu os frutos que se conhecem,
mas que talvez não esteja tão à vista quanto hoje. Talvez não tivesse sido
líquido para a grande maioria das pessoas a tremenda teia de interesses
partilhada entre 3 famílias partidárias, aparentemente diversas, mas quiçá irmanadas
na absorção completa dos lugares disponíveis do aparelho de Estado, para as
suas cliques. Uma aliança contranatura, de um discurso por vezes antagónico,
mas a que se parece sobrepor sempre a mesma filosofia dura de uma cruel e
sangrenta disputa de lugares, destinada a ocupar pastas ou postos-chave em
conselhos de administração, assessorias diversas, de conhecidas prebendas.
Com a ruptura que parece protagonizar o entendimento
das Esquerdas, abre-se provavelmente um novo caminho. Se para alguns é uma nova
esperança, para outros será seguramente o fim de conhecidos privilégios. Se as
direcções partidárias estudam e analisam um novo discurso, tal só poderá
significar uma nova percepção da realidade. Um exemplo paradigmático será
porventura o anúncio, outrora improvável, da apresentação de uma moção de
rejeição única ao programa do governo recentemente empossado. O novo discurso
representará decerto um enorme salto qualitativo relativamente a costumeira
fórmula adoptada por PCP e BE, que analistas, comentadores e politólogos
classificavam como “cassete” típica de quem apenas aspirava ao protesto e nunca
a governação.
2. Vale
a pena esperar
Todas as semelhanças e diferenças são possíveis.
A adopção de um formato discursivo de tipo novo, é necessária e urgente. E poderá
significar uma efectiva ruptura, desde que se baseie numa real alternativa de
poder, contra a minoria que parece não querer entender que existe mesmo uma
alternativa. Acredita-se que seja penoso, para quem sempre afirmou a
inevitabilidade, pela imposição de uma força legitimada, lidando sempre muito
mal com a diferença, ver agora a alternativa surgir e ficar de certa forma
impotente para a deter. O discurso desta vez não poderá ser somente o de uma
alternância, pura e simples, essa já foi durante décadas. Para além de dever
ser um discurso claro e afirmativo, ele deverá ser também um discurso de
conteúdo e não apenas de retórica. Diz por estes dias que esta deu agora lugar
a dialéctica, enriquecendo desta forma o debate político, acrescentando-lhe a substância
que a retórica lhe retira.
Quem foi diminuído, subjugado e traído espera
decerto muito. Espera que lhe seja em primeiro lugar devolvida a dignidade
perdida. Espera ainda que lhe sejam apresentadas medidas claras, tendentes a
devolução das condições de vida condigna. Espera certamente a inversão de (pelo
menos) algumas decisões ultrajantes do anterior governo que levaram a venda do
País a retalho, sem quaisquer contrapartidas que não tenham sido a camuflagem
de um défice necessariamente maquilhado. Esperam finalmente o reconhecimento de
uma efectiva cidadania, contra o medo ainda instalado e que a Direita utiliza diariamente
de uma forma vil e soez. Este é o discurso típico das ditaduras e dos regimes
que se sentem ameaçados na sua legitimidade e que não tem já outro recurso que
não seja a forma típica de intimidação como arma.
É muito positivo que a “coligação” das
Esquerdas tenha escolhido temas como a defesa do Estado Social, dos salários e
das pensões e da reposição das condições de vida. Mas é seguramente necessário
que o discurso seja de mudança. Não compreender isto seria dar um golpe fatal
nas esperanças da maioria da população, que acredita e aposta na Esquerda, para
um futuro diferente. O discurso volta uma página decisiva. É mesmo necessário
aproxima-lo da vida das pessoas, um discurso que fale a verdade, uma linguagem que
faça as pessoas sentirem que vale a pena viver em sociedade de uma forma
decente e feliz. Afinal, um discurso de Liberdade. E há quem o esteja a fazer,
aqui e agora. É só mesmo preciso ouvir, ler e pensar um pouco. Vale a pena
apostar num discurso que conjugue o Condimento, a Cidadania e o Desenvolvimento.
Um discurso com futuro, contra o medo.
3. Vale
a pena sonhar
Curioso será então reflectir, caso se inverta o
rumo das políticas do centrão partidário que, durante cerca de 40 anos dominou,
o que vai ser da enorme multidão de comentadores, painelistas e outros
quejandos, que vivem à sombra do regime, que alimentam e são alimentados por
ele. Sempre unânimes, mesmo que por vezes ainda não, sempre em conivência com a
inevitabilidade, pregando de sua cátedra o discurso confortável, conformista e naturalmente
cúmplice, terão provavelmente o mesmo fim dos que ajudaram a promover e a incentivar.
E que diriam se, numa qualquer esquina da cidade, deparassem com este diálogo:
“- A que
horas começa a Revolução?
- Ah, meu caro, a Revolução é um sentimento,
é uma sensação única e uma necessidade de mudança (…)
- A que horas começa?
- Às três, na praça central…”[1]
[1]
Extraído e adaptado de “O Trocicologologista,
Excelência”, de Gonçalo M. Tavares, Ed. Caminho, Lisboa 2015, pág. 7