28 maio 2023

 O MITO DA ALTERNÂNCIA

25 Maio 2023


 

Perceber hoje o significado de “alternância” é importante e possivelmente será uma das chaves para a compreensão do fenómeno político. Em Portugal e na Europa, não deixando de levar em consideração o panorama internacional, que, como se vai constatando, ultrapassa a visão estreita que circunscreve à Europa e EUA a primazia de tudo o que passa no mundo. Mudar ou fazer variar sucessivamente, poderão ser sinónimos de "alternar", sendo a “alternância”, na sua significância elementar, a acção ou resultado de alternar. Mais que um conceito, a alternância adquire nos dias de hoje, o primeiros dos equívocos das democracias frágeis, mal consolidadas, ou simplesmente formais. Ligada ao Poder, a alternância é na verdade um mito dos tempos modernos, que urge desconstruir. 

 

O mito estende-se também à democracia. Sendo, como é, associada formalmente à alternância de poder tout court, perde sentido ou é simplesmente dele esvaziada e dá lugar a outro equívoco. É vulgar ouvir dizer, vivemos em democracia, existem partidos políticos, há eleições, este é o melhor sistema que existe. A tese é extensível, para muitos, ao designado “modo de vida ocidental”, o melhor que há, porque é supostamente superior a todos os outros.  Na verdade, a alternância é apenas um dos mitos da democracia.  Outro dos mitos é a separação dos poderes executivo, legislativo e judicial. A curiosidade está em que a dita alternância só se aplica, na prática, ao poder executivo, tanto assim é, que, quando há eleições se fala apenas em quem vai chefiar o executivo e muito pouco como será a composição da assembleia, que tem poderes legislativos. O judicial está normalmente fora das contas e tem o papel de proporcionar justiça para os “poderosos”, afinal a classe que detém o Poder.

 

E se a alternância se reportasse a uma efectiva mudança de políticas, no sentido de melhor servir os cidadãos? Teria toda a lógica que assim fosse, se atribuirmos o verdadeiro valor ao termo “mudar”. E é aqui que a democracia deveria ter um outro papel, que não somente a garantia de mudar o partido ou a coligação que está no Poder. A distinção entre os sintagmas “democracia representativa” e “democracia participativa” serve apenas para ofuscar a verdadeira questão, que é, ou deve ser, a da necessidade da transformação social. De facto, a democracia, enquanto poder dos cidadãos deveria incorporar aquelas duas vertentes, numa síntese harmoniosa. 

Não é isso que acontece de todo. Nos modelos ocidentais poderemos encontrar exemplos variados de países em que se admite existirem democracias consolidadas e, ao mesmo tempo, capazes de impor aos cidadãos, muitas vezes com rédea curta e mão de ferro, as maiores injustiças, atropelos e mesmo atrocidades. Sempre na forma de guerras exportadas ou por procuração ou sob o controle de sistemas económicos e financeiros verdadeiramente destrutivos para as pessoas e para a natureza. Mas sempre também com a justificação pérfida que o “nosso” sistema é o melhor que existe e não há alternativa. E é precisamente assim que a questão se resolve. Ou não resolve. 

 

Uma das premissas que se costuma avançar para justificar a questão é a falta de qualidade dos governantes, aliada a uma incapacidade de tomar decisões. As duas poderão ser uma justificação, mas jamais serão a justificação. Sempre existiram governantes fracos ou fortes, competentes ou não, dedicados à defesa de princípios e valores. O verdadeiro problema é que a alternância não existe no nosso País, há mais de quarenta anos. Para existir alternância seria necessário equacionar e pôr em prática verdadeiras políticas de ruptura, nos planos económico, social e político. Políticas alternativas para dar resposta aos problemas que o País enfrenta, na saúde, na educação e ensino, na habitação, no emprego, na indústria, na agricultura e nas pescas e nos sectores de produção e distribuição de bens essenciais e outros serviços. A alternativa existe e deverá consubstanciar uma mudança radical de atitude, na política e na economia. O mito da alternância não permite, nem de longe nem de perto, a necessária mudança. Apenas serve para alimentar um sentimento de descrença dos cidadãos que não conseguem resolver os seus problemas essenciais, nem encontram qualquer saída que não seja agarrarem-se a populismos duvidosos. Precisamente porque não há alternância verdadeira, a não ser a dança permanente entre partidos que, embora o neguem, seguem a mesma cartilha, às vezes a mesma cassete, hoje transformada, com a transição digital, num formato pretensamente moderno, com termos e conceitos que são a face dócil da dominação e da subjugação.

 

Contra o mito, contra todos os mitos, é necessário falar claro. E falar duro. Por exemplo, é preciso dizer aos cidadãos que sem um rompimento com o sistema da moeda única, que estrangula o crescimento, não é viável, nem possível pensar em desenvolvimento económico, nem em redistribuição do rendimento, nem em justiça social. Não é verdadeiramente possível exigir mais investimento em políticas públicas, sem romper com o mito, mesmo que não seja de imediato. Mas é preciso e imperioso que tal se discuta e analise, para poder agir, no momento considerado como certo e oportuno. Mais, é preciso dizer aos cidadãos que o sistema desta “união” não é democrático, nem justo, que é um sistema de proteccionismo que urge erradicar, para construir uma Europa solidária e definitivamente afastada da corrida belicista e que tal só é possível com a rejeição dos tratados de expansão e de guerra.

 

A tese modernista em considerar tudo o que não encaixa no pensamento único como “preconceito ideológico”, tem um sentido proteico e encarna a forma que melhor se conhece para mistificar e enganar, contribuindo para o afastamento progressivo dos cidadãos e para a incubação, gestação e posterior nascimento e florescimento de serpentes venenosas, os grupos de natureza nazi-fascista, racista e xenófoba. 

A negação da alternativa, que formulou a divisa TINA (There Is No Alternative), durante o conturbado período da pretensa “salvação dos países europeus endividados”, constitui a tensão suprema do neoliberalismo, para reduzir aos mínimos o chamado “sistema democrático”. Que na verdade não o é, por incorporar o gérmen da intolerância, da industrialização das consciências, da discriminação e da exclusão. Os governos que hoje se sujeitam, muitas vezes de forma acrítica, como é o caso dos países submetidos à ditadura económica e financeira do espaço designado de “União Europeia”, alimentam o mito da alternância democrática, da democracia e são cúmplices na destruição sistemática dos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O sociólogo brasileiro Michael Löwy disse em 2015 que a imensa Europa, após o triunfo do neoliberalismo, mais parece um grande partido único, chamado PMU (Partido do Mercado Unido), com duas variantes que apresentam diferenças limitadas, a versão de direita neoliberal e a de centro-esquerda social liberal.

 

A asserção de Aristóteles de que “A dúvida é o princípio da sabedoria” vale um postulado. Hoje assiste-se a uma autêntica negação da sabedoria, muito particularmente porque parece não haver lugar para a dúvida. Aliás, quem se arrisca a duvidar das narrativas mais ou menos oficiais, é imediatamente rotulado de epítetos conhecidos, como são exemplos vivos e actuais, as relativas à guerra, que, para uma imensa maioria “iluminada” só existe no território ucraniano. Proibido assim duvidar, está instalado neste mundo a velha tese se não és por mim, és contra mim. A sabedoria passou para um plano de resgate. Instalado o mito, instalado o medo, não há lugar a qualquer alternativa, que não seja a insubmissão e a revolta permanente. Claro que isto tem um preço.


 O CHARME DISCRETO DA SERVIDÃO

18 Maio 2023


 

Servir a um amo não é propriamente uma ideia recente. Remonta à antiguidade e sempre foi um factor de discriminação. O objectivo de dominar e subjugar pode ser brutal, discreto e mesmo suave, não abdicando, porém, de ser o que é. Uma das formas mais subtis que a Idade Média introduziu foi a condição de servo da gleba, destinada a suavizar a escravatura. O servo continua a ser escravo, mas da terra e não propriamente de um dono. A ideia de servidão existe também na lei, no caso de um encargo imposto num prédio, quando o respectivo dono tem a faculdade de usufruir ou aproveitar vantagens ou utilidades de prédio alheio em benefício do seu. Donos continuam a ser os que detêm os meios de produção e de distribuição, exercendo o seu poder sobre a maioria da população trabalhadora. Predial ou não, a servidão continua a ser o problema primeiro das sociedades capitalistas.

Em meados do século XVI, o filósofo francês Étienne de La Boétie escreveu um hino à liberdade, a que chamou “Discurso da Servidão Voluntária” e onde sustenta a tese da obediência consentida dos oprimidos. Nele se fala do “tirano”, que, para além da esfera política agrega ainda o domínio da consciência, propondo de certa forma o estudo entre o domínio e a servidão nas relações interpessoais e em que o Estado intervém, na exacta medida da legitimação da subordinação. Em pleno século XXI, o ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger publica a obra “O Afável Monstro de Bruxelas, a Europa Sob Tutela”. Após aturada investigação sobre a designada “União Europeia”, o Autor mostra a evidência da ausência de democracia, manifestada pela imposição de regras e normas inerentes ao sistema neoliberal, que representam hoje uma verdadeira autocracia, em que a servidão é o charme discreto de um poder, pintado com as cores da mais profunda demagogia e servido por um aparelho imenso de propaganda, pago pelos estados-membros. A multiplicidade de organismos não-eleitos que efectivamente exercem o poder de facto, na dita união, é completada com uma teia burocrática que domina as máquinas de Bruxelas e Estrasburgo e que arrasta a imensa maioria dos Estados para a estagnação económica, impedindo o crescimento. As crises perpétuas arrastam a ruína e o declínio de uma civilização que se auto-subjuga aos interesses dos poderosos, nas vertentes económica, financeira e das indústrias da guerra.   

Curiosamente, é um assumido liberal, o economista e filósofo austríaco Friedrich von Hayek que, em 1944, apontava a necessidade de abandonar o caminho para a servidão, trilhando o da liberdade. Em boa verdade, o “caminho” apontado, mais não foi que a teorização dos princípios de um sistema económico que hoje representa a mais refinada servidão. Um sistema que ostenta hoje esta realidade chocante: 63% de toda a nova riqueza criada desde 2020, no valor de 42 mil milhões de dólares beneficiou apenas 1% da população mundial. Os poderes constituídos fazem escolhas ao proteger os detentores do capital. Essas escolhas chamam-se, como afirma Sandra Monteiro, Directora do Le Monde Diplomatique, em artigo de Abril passado, “...mercantilização, financeirização, neoliberalismo, tudo formas de expressar uma construção político-ideológica global, apoiada nos Estados, de transferência de rendimentos do trabalho para o capital, que arrasa comunidades e o planeta.”

O País onde vivemos e trabalhamos é, como por essa Europa dentro, palco de um discurso vazio, politicamente correcto, para além de punitivo relativamente a quem trabalha e passa por dificuldades. E que tem como finalidade primeira ocultar a realidade às pessoas, que, no dia a dia, vêm os preços dos produtos, as rendas e outros bens aumentarem escandalosamente. Esse discurso contribui para que raramente se discuta o essencial, que deveria ser a qualidade de vida dos cidadãos. Na opinião do economista Eugénio Rosa, “Uma das campanhas de manipulação da opinião publica em curso tem sido convencer os portugueses que os preços estão a diminuir e a economia a crescer. Para isso distorcem-se dados e ocultam-se outros.” Este economista utiliza os dados oficiais da Direcção Geral de Energia e Geologia para constatar “...a subida dos preços dos combustíveis, foi muito maior nos preços sem impostos, aqueles que revertem na totalidade para as empresas, do que nos preços dos combustíveis com impostos, embora, à primeira vista, pareça impossível”. E informa ainda, com base em registos do INE e do Eurostat, que, entre Março e Abril deste ano a inflação média anual manteve-se praticamente igual, na casa dos 8,6% e a inflação anual dos “produtos alimentares e bebidas não alcoólicas” aumentou de 16% para 17,2%. Confirma que os preços em Portugal continuam a subir, prevendo-se uma inflação real na casa dos 9,5%. A verdade é que os produtos estão mais caros e tal significa um sufoco para uma grande parte dos cidadãos. E uma outra verdade é que há quem esteja hoje a consumir menos na alimentação, por culpa da redução do poder de compra.

Um dos factores que contribui para o agravamento das condições de vida dos cidadãos, particularmente dos trabalhadores, é o aumento das taxas de juro. Poderíamos pensar que existe uma opção do governo para proteger os seus concidadãos. Todavia, o que se passa parece ser exactamente o contrário. Numa economia sobre-endividada como a do nosso País, a opção pelo cumprimento escrupuloso das regras ditadas por Bruxelas, consiste numa dupla penalização, uma vez que as medidas adoptadas servem para tudo, menos para o que deveriam servir. Os preços aumentam e continuam a aumentar e o que se vê é o regozijo governamental porque a economia está a crescer mais que a média europeia. Mas o que significa isso em concreto para as pessoas?

O que os cidadãos precisam mesmo de saber é que, desde a entrada do euro foi destruído grande parte do sector produtivo, da agricultura e das pescas, para se apostar no imobiliário e no turismo, imposições da dita união. Que foi seriamente ameaçado o poder de compra dos trabalhadores, dos pensionistas e reformados. Que os salários nunca acompanharam o aumento do custo de vida e que constituem, em 2023, um verdadeiro escândalo dentro da própria “união”. Que o emprego qualificado diminuiu. Que uma moeda forte demais para a economia portuguesa determinou a progressiva estagnação, para a qual a única saída possível seria, no mínimo, um fortíssimo aumento do investimento público, na saúde, na habitação, na escola pública e em todos os sectores necessários ao desenvolvimento efectivo do País. Mas tal não é “permitido” aos governos nacionais eleitos e quem não o permite são os directórios europeus que não são eleitos. É preciso dizer que isto não é Democracia, ao contrário do que afirma a propaganda dos que mandam na Europa. Uma notícia da semana passada, dava conta que Bruxelas “culpa aumentos salariais” para um atraso do alívio da inflação...

Na verdade, a luta por melhores condições não é uma figura de retórica, antes significa o mais elementar dos direitos de quem trabalha. Hoje é uma luta de sobrevivência. Amanhã será a de repor a justiça social, retirando os privilégios a quem impõe a servidão permanente, mesmo que sob o “manto diáfano da fantasia”, com o charme discreto que a hipocrisia burguesa lhe outorgou. 

Hoje a luta é, ou deve ser, pelo Poder. Pela conquista do Poder. As consequências são claras, as opções irão determinar as formas que tal conquista acarreta. Os partidos e organizações políticas, que se reclamam dos trabalhadores, deverão ter a palavra certa, no momento oportuno. A servidão só terá fim à vista quando tal acontecer.


23 maio 2023

A PROPÓSITO DE UMA CERTA COIMBRA RUSSOFÓBICA


Sou ouvinte assíduo das crónicas do Daniel Oliveira (DO), nas manhãs da TSF. Porque é o único comentador de Esquerda, entre 6 de Direita, ou aparentados. Por isso mesmo ouço com toda atenção e saio a terreno quando considero que entra no campo pantanoso do politicamente correcto.
Ou de afirmações pouco dignas de uma pessoa de Esquerda

Como aconteceu na crónica de hoje.
DO denuncia (e bem) a campanha infame que foi movida ao professor universitário Vladimir Pliassov, que foi demitido pelo magnífico reitor da UC. 
DO fala (e bem) em exclusão ideológica e russofobia. Muito bem.
Só que, ao levar para o campo da exclusividade, sempre ligada à famigerada guerra por procuração, DO oculta o essencial. Que é precisamente a perseguição implacável que vem sendo movida à Rússia, enquanto estado e que nada tem a ver com Putin (seria o mesmo se estivesse lá outro russo qualquer), mas sim com a tentativa deliberada de americanos e europeus, melhor dizendo administração americana, NATO e EU, para balcanizar a Rússia.
A coisa vem de há muito, atenção.

Eu não sei se, como diz DO, "Portugal apoia a resistência ucraniana". O que sei é que o Governo português, seguindo a cartilha dos EUA e da dita "união" europeia, embarcou na fúria armamentista e deu ao governo ucraniano 250 milhões de "ajuda". Sei ainda que o Ministro da República que representa, em Portugal, o triste papel de delegado da NATO e dos EUA, vem vomitando sucessivamente a propaganda mais rasteira, de obediência canina aos do costume.
DO está preocupado (e bem) com a “legalidade democrática”. Mas ao acrescentar que “É por ela que combatemos os Vladmir Putin deste mundo” cai no mesmo erro de toda a direita reaccionária, que odeia tudo o que cheire a Rússia. Infelizmente, o mesmo erro praticado (e até custa a dizer isto) pelo BE. 

Entretanto as guerras ignoradas continuam e, apesar de DO se preocupar (e bem) com elas, continuam a ser esquecidas, bem por culpa do pensamento único, da industrialização das consciências de um neoliberalismo feroz que está a destruir o mundo.
Que tem responsáveis e que sabemos quem são. 
O principal problema é esse e não pode nem deve ser escamoteado.
O verdeiro perigo é esse. Esquecer isso é um erro tremendo.

14 maio 2023

SOBRE A QUESTÃO DA PERTENÇA

11 Maio 2023

 

Pertencer a um grupo, ou a uma comunidade, implica perceber algumas das determinantes em jogo, a primeira das quais poderá ser a percepção do próprio grupo, enquanto conjunto de propriedades comuns para a identificação pessoal. O mundo moderno é hoje um lugar de circulação de pessoas e culturas, embora muitas vezes o seja por imperativo de guerras e catástrofes, que obrigam a um movimento contínuo. A adesão voluntária a um grupo é uma das condições de liberdade do Homem. A exclusão, como contraponto, é, na maior parte das vezes, um sinal de degradação das comunidades. Na matemática, a teoria dos conjuntos enquadra uma relação entre elemento e conjunto, designada de “pertinência”. Nas ciências sociais, a questão pertinente que se coloca é a de saber que valor é dado à pertença e como esse valor pode interferir com a vontade e o direito do cidadão.

 

Um grupo social que parece escapar à pertença, seja ao país, à nação ou ao território, é seguramente o dos refugiados. Sabe-se, através do relatório de situação do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), que é actualmente de 100 milhões o número de pessoas deslocadas devido a guerras, violência, perseguições e abusos de direitos humanos. Se o mundo é um local perigoso, esta poderia ser decerto uma marca visível desta afirmaçãoOu a comunidade internacional se une para enfrentar esta tragédia humana, resolver conflitos e encontrar soluções duráveis, ou esta tendência terrível continuará”, diz o Alto-Comissário da ONU para os Refugiados, Filippo Grandi, que vê aquele número a subir todos os anos, na última década.

 

O exemplo do Ocidente, na forma como lida com a situação dos refugiados, expatriados ou “rejeitados”, é paradigmático. Uma sociedade que quer manifestar a sua superioridade, em valores, conceitos ou princípios e que, contra todas as boas normas de saber ouvir e pensar, pretende exportar e impor os seus modelos de governação e de natureza económica e financeira, acaba por ver sempre o mundo, através da sua estreita janela. Os exemplos são na verdade exactamente o contrário dos princípios e o que se constata é muito mais um deslaçamento social do que qualquer propósito em reforçar laços de pertença, ou de cidadania. A exclusão reina no dito espaço europeu, por força de um sistema económico castrador e incapaz de cimentar a coesão social. A melhor prova foi a forma como foi tratada a pós-pandemia, na vertente do isolamento forçado e arbitrário. O que se passou foi, pura e simplesmente, um reforço do autoritarismo, restritivo de liberdades, um isolacionismo e uma estigmatização de pessoas e grupos sociais, que já sofriam de discriminação, por serem “diferentes” ou mais velhos. Atitudes excludentes e comportamentos anti-democráticos que se reforçaram depois de Fevereiro do ano passado, aquando do reacender da guerra na Ucrânia. 

 

A socióloga política catalã, Maria Guibernau, especialista em nacionalismos, estuda as transformações globais que determinam a estrutura do nacionalismo e da identidade nacional, bem como a análise da diversidade nacional e étnica, particularmente na União Europeia. Segundo a investigadora, as questões de identidade, quer políticas, quer de mobilização cultural, são determinantes na definição de soberania. Ao mesmo tempo que afirma que a “solidariedade gratuita não se pratica”, distingue soberania e nacionalismo. À primeira atribui a capacidade de uma comunidade ser livre para decidir o seu futuro político. Ao segundo reconhece-lhe a dupla faceta de estar associado ao direito das diferentes culturas de sobreviver e de se proteger, por um lado, e, por outro lado, de estar ligado à limpeza ética, à exclusão e ao nazismo. A cientista fala em cinco dimensões, psicológica, cultural, territorial, política e histórica, necessárias à compreensão de “nação”, um grupo onde uma comunidade se possa constituir e partilhar uma cultura comum. A ligação a um território, onde exista um passado e um projecto comuns determinará, de forma consciente, a necessidade e o direito de se governar. A perspectiva “nacional” não deve, contudo, dissociar-se da visão internacionalista que os trabalhadores precisam para lutarem contra a exploração.

A questão de pertença poderá ser um dos maiores desafios do século XXI, que convive com o dilema e aparentemente ainda não encontrou forma de o superar e de estudar de que forma a pertença dos cidadãos é determinante para essa superação. Ou que seja, no mínimo, uma qualidade a ter em consideração. As pertenças podem ser diversas e, por vezes, podem até opor-se e fazer com que os cidadãos sejam forçados a fazer escolhas, nem sempre fáceis. As pertenças não têm todas o mesmo grau de importância, sendo elementos constituintes de uma identidade, conforme nos diz o escritor libanês, também com nacionalidade francesa, Amin Maalouf.

 

Em princípio, os grupos de pertença promovem e estimulam a autonomia e a identidade pessoal e social dos cidadãos, ajudando o desenvolvimento das capacidades e potencialidades de cada um. Todavia, esses grupos não devem dissociar-se da prática da análise e discussão políticas, que elevam a formação e contribuem para uma intervenção cívica e política, de forma consciente e deliberada. A pertença a uma comunidade é parte integrante de qualquer formação cívica. Max Weber e Karl Marx trataram, a seu tempo, a questão da necessidade da inclusão do indivíduo num grupo. Weber, dando ênfase à pertença a um grupo, uma organização, uma administração e um Estado. Marx, preocupando-se com o facto de a burocracia não levar em consideração a pessoa humana e de não lhe oferecer a necessária pertença. E foi Franz Kafka, contemporâneo de Weber, a reforçar o pensamento de Marx, colocando nas burocracias a responsabilidade e os obstáculos à “pertença”, pela sua construção negativa, com labirintos de normas e regulamentos que se atropelam, forjando organizações administrativas ineficientes e alienadas. Nos dias de hoje, a burocracia constitui uma espécie de punição aos excluídos, um afastamento progressivo dos circuitos de decisão, uma quebra imensa na sua relação de pertença social.

 

Um espaço que poderia ser de pertença dos cidadãos é, na era moderna, a cidade. O desenho, construção e ocupação de ruas, praças e avenidas determinam a relação com o edificado e deste com o cidadão utilizador. Todos os espaços de uso público deveriam constituir-se como resposta às necessidades das pessoas, uma vez que possuem características que conduzem à apropriação pelos cidadãos e apresentam-se como fundamentais para a vida em conjunto. A questão da pertença passa, em parte, pela identificação do cidadão com o território. E este deve estar ao serviço da prática da cidadania e da democracia, determinantes fundamentais para a intervenção cidadã. 


10 maio 2023

     O FUMO OCULTO

 

A leitura das notícias de hoje relacionadas com novas medidas de restrição ao tabaco, revelam a estupidez massificada da “perseguição”, bem como a mediocridade intelectual dos dirigentes e burocratas de serviço. Sendo mais uma imagem do politicamente correcto, aqui aplicado a uma pretensa defesa e prevenção da saúde, não passa de mais uma mistificação e perversão.

Senão é vê-los, todos os dias, a desprezar tudo o que é mais elementar, particularmente falando no caso da prevenção, no que reporta, por exemplo, às doenças oncológica e à saúde mental. Pelos vistos, é mesmo este (saúde mental) o problema deles, ocupados agora a ver quem se atreve a fumar na esplanada da esquina, ou no intervalo entre duas aulas, na Faculdade. 

 

A verborreia desta gente é asquerosa e desprovida de qualquer sentido. É o resultado do proibicionismo feito lei nesta decadente sociedade ocidental, centrada no umbigo da sua impotência. 

Os líderes fanáticos, apoiados em comentadores e palradores idiotas, ávidos de protagonismo parecem querer reeditar os informadores da PIDE (a coisa anda lá perto), como tive ocasião de verificar, nesse “farol da liberdade” que são os EUA, onde vizinhos e colegas de trabalho já denunciam que se atreve a puxar de uma beata.

Com estes alarves, o retrocesso civilizacional dá mais um passo. A ditadura, baseada no espectáculo e na estupidez institucionalizada, está bem mais perto do que parece. Esta gente medíocre pode ter hoje algum sucesso, porque afinal até os deixamos “existir”. A sua erradicação é urgente e necessária, é um acto de inteligência.

 

Informação não despicienda: não sou fumador.


09 maio 2023

 O PODER DOS TRABALHADORES

4 Maio 2023


 

A passagem de Abril a Maio lembra necessariamente a luta dos trabalhadores pela sua emancipação. Os custos, os avanços e recuos da luta, representam a imagem de uma sociedade que está muito longe da perfeição. Antes pelo contrário. Desde os anos oitenta do século passado, na era Thatcher e Reagan, uma verdadeira contra-revolução económica avançou num combate sem trégua aos sindicatos, protegendo os mais ricos e impondo aos países em desenvolvimento uma receita infame de redução do papel do Estado e dos investimentos públicos. As duas figuras citadas declararam guerra aos sindicatos, visando mesmo a sua liquidação. 

 

A expansão do neoliberalismo, tornado receita nas sociedades modernas ocidentais, tem como contraponto o recrudescimento da luta dos trabalhadores. Estes continuam ser a classe expropriada dos meios de produção, levam uma vida sempre dura e estão cada vez mais afastados dos centros de poder, pautando a sua existência, pela resistência constante e permanente. Nada mudou que justifique uma outra análise. A transferência de rendimentos do trabalho para o capital é a prova disso mesmo. No ano passado, por exemplo, foram transferidos mais de 8% de rendimentos, uma vez que a remuneração deveria ter crescido no valor equivalente a 11,5% do crescimento do PIB nominal por trabalhador e cresceu apenas 3,1%, resultando a diferença entre os dois valores. 

Todavia, não haverá determinante mais evidente: a luta de classes continua e faz cada vez mais sentido, nesta fase do neoliberalismo. E, talvez por isso mesmo, os ataques aos trabalhadores e às suas organizações de classe, continuam. Pode ser um ataque diferente, o sentido será o mesmo. Hoje em dia, sob a forma disfarçada, com tentativas mistificadoras utilizadas, quer pela teoria clássica da conciliação, quer pelo discurso neoliberal, que convergem na divisa da necessidade de os sindicatos se adaptarem às novas realidades. Como se a realidade não fosse a mesma e em alguns casos ainda pior.

 

Como há casos que não se podem, nem devem, esquecer e que mostram como os trabalhadores são perseguidos e, quando possível, pura e simplesmente eliminados, importa lembrar aqui o massacre de 2 de Maio de 2014, na Ucrânia, após o Euromaidan, ou Revolução da Dignidade, onde pontificavam grupos desde a direita moderada à extrema-direita. Nesse dia, mais de um milhar de militantes organizados da extrema-direita nazi-fascista, sob a chefia da milícia paramilitar neonazi Pravyy Sektor e com o apoio dos hooligans do clube Chermorets, invadiram um edifício que albergava diversas sedes de Sindicatos e também do Partido Comunista da Ucrânia. Neste ataque criminoso morreram carbonizadas 39 pessoas. São muito recentes, datando de meados do ano passado (2022), os apelos dos sindicatos e sindicalistas ucranianos, a um apoio internacional perante a destruição de direitos laborais naquele País.

Também no Brasil, em 2019, sob o governo Bolsonaro a ofensiva sobre os trabalhadores e as suas organizações sindicais ganhou foros de uma verdadeira perseguição, quer aos direitos, quer à organização da classe trabalhadora. Nessa altura ficou célebre a Medida Provisória 873, que foi considerada a maior fraude legislativa contra o povo brasileiro dos últimos 50 anos e que teve como objectivo directo enfraquecer e retirar poder aos sindicatos e demais entidades representativas dos trabalhadores e desviar a atenção da luta contra a reforma da Previdência.

 

Sendo uma palavra de ordem de classe, a independência total e incondicional dos sindicatos em relação ao Estado capitalista, significa hoje, como no início do século passado, transformar os sindicatos em organismos das grandes massas exploradas, para além da necessidade absoluta de promover a democracia sindical. Como tal e, para poder ganhar influência na classe trabalhadora, os sindicatos deverão lutar contra a burocracia interna e preservar a livre eleição e destituição, quando as circunstância assim o determinarem. Os dirigentes devem prestar contas dos seus cargos e recusar outras benesses. Os sindicatos devem ser um exemplo social de democracia e de luta. E em questões de luta devem incluir-se, para além da directamente relacionada com as questões reivindicativas, a luta por melhores condições sociais e a luta política por uma sociedade em que não exista exploração. Sindicatos preocupados com a acção política global, são um esteio social, quer na perspectiva da resistência de hoje, quer na construção das sociedades do futuro.

 

O poder dos trabalhadores passa pela fundação, construção e consolidação das suas organizações de classe, os Sindicatos. O posicionamento político e o funcionamento do sindicato deve ser determinado e decidido pelos trabalhadores que o integram. A sindicalização é livre e voluntária, cada trabalhador desconta do seu salário para contribuir para o seu sindicato. Assim sendo, a orientação das suas políticas cabe exclusivamente aos trabalhadores. Os conselhos que dia após dia os sindicatos recebem para a necessidade de se “adaptarem às novas situações”, representam uma intromissão grosseira do capital, que obviamente tem um único objectivo, a liquidação dos sindicatos. Quando a política de um sindicato, ou de uma central sindical, afronta, como deve ser, as políticas neoliberais, vêm ao de cima os interesses de classe, que determinam a história da humanidade. Não é por acaso que a extrema-direita, em Portugal, na Espanha e não só, ao querer fundar sindicatos, de cima para baixo e baseados na “conciliação”, está na verdade a reportar-se ao fascismo e ao nazismo. A notícia da possível fundação de uma nova central sindical no nosso País, de índole corporativa, está aí, para dar o exemplo, imitando o caso espanhol. 

 

O movimento sindical português, antes e após o 25 de Abril de 74, conseguiu conquistas importantes, quer na defesa da Revolução, quer na melhoria das condições de vida dos trabalhadores. É um poder que existe e pode e deve ser preservado e ampliado. As manifestações do 1º de Maio deste ano, foram um sinal para a afirmação da importância dos Sindicatos, da organização dos trabalhadores e de um alerta ao capital.

 

A força dos trabalhadores é bem retratada por Steinbeck, em “As Vinhas da Ira”: “...cada greve vencida é uma prova de que se está dando um passo... receiem a hora em que o Homem não queira sofrer mais e morrer por um ideal, pois esta é a qualidade base da Humanidade...”. O poder dos trabalhadores deve mostrar a sua força e deve ser exercido nas suas organizações, uma preparação para um futuro, que se deseja breve, em que eles exerçam o poder na sociedade.

 


 49 ANOS DEPOIS - 2. A “FRENTE AMPLA 25 DE ABRIL”

25 Abril 2023


 

Aproveitando o que resta de Abril, mesmo admitindo o condicionamento a que está sujeita a participação dos cidadãos na vida pública e política do País e no sentido de tentar colmatar o défice democrático, um grupo de cidadãos formou, no passado ano de 2022, um movimento, que se revê nos princípios e valores do 25 de Abril e que se propõe intervir na vida cívica e política do País, promovendo iniciativas e acções concretas, em diversas áreas de interesse colectivo. O Movimento pretende trazer novos protagonistas para a intervenção política, agregando organizações sociais, partidos e associações políticas, numa frente unitária, que adoptou a designação Frente Ampla 25 de Abril (FA25ABRIL).

 

A FA25ABRIL coloca uma tónica especial na necessidade de reactivar a democracia, com ênfase na importância e papel central da intervenção cidadã. Defende a acção política constante e não apenas a mera participação em actos eleitorais. Constata que o modelo tradicional de democracia representativa, que dominou grande parte do século anterior, revela grandes dificuldades para interpretar e responder atempadamente às transformações da sociedade e restringe o verdadeiro sentido do cidadão em participar na vida política. E afirma que este modelo tem mostrado um afastamento progressivo dos cidadãos e um desencanto relativamente às questões que lhe dizem directamente respeito.

 

No Manifesto afirma-se “Como cidadãos empenhados, sentimos a necessidade premente de discutir e responder colectivamente a uma crise múltipla que exige políticas transformadoras. Propomo-nos lançar um movimento político dinamizado por cidadãos, activistas de movimentos sociais, responsáveis de organizações da economia social e cooperativa, sindicalistas, intelectuais e jovens interessados no bem-comum.” Defende-se a formulação de um “...programa em consonância com os princípios da Constituição da República Portuguesa, saída da Revolução de Abril”. Reitera-se que “Em sintonia com os ideais do pós-guerra, Portugal instituiu um modelo de Estado Social constituído por serviços públicos universais e gratuitos, segurança social financiada pela solidariedade entre gerações, direito do trabalho com forte protecção da parte mais frágil na relação laboral, propriedade pública de monopólios naturais e serviços de interesse geral, tributação progressiva, direito a uma habitação condigna e promoção do pleno emprego. Contudo, após duas décadas de neoliberalismo, o modelo económico baseado em baixos salários permanece, o Estado Social degradou-se, a ideologia das privatizações foi aplicada com zelo, desigualdade e pobreza alcançaram níveis chocantes, o direito a uma habitação condigna tornou-se uma miragem, e a precariedade laboral instalou-se. O desencanto com a Democracia cresceu de forma expressiva dando à extrema-direita uma importante representação parlamentar.

 

Saber se esta Frente é um caminho possível para garantir, além da liberdade individual e colectiva, a livre participação na gestão transparente e partilhada da comunidade, é o desafio que se coloca aos promotores do Movimento e a todos os que decidiram apoiar o Manifesto, juntando assim esse apoio à consolidação e desenvolvimento da sua influência. 

 

Num período verdadeiramente conturbado, a nível interno e internacional, parecem ser de considerar duas premissas que poderão, se minimamente satisfeitas, contribuir para a defesa dos cidadãos e para a sua progressiva autonomia. A primeira, tem a ver com a promoção da literacia na comunicação política, em matéria de informação constante e permanente e também da formação política, mostrando aos cidadãos a importância da política nas suas vidas. A segunda está intimamente relacionada com a necessidade de acabar com mitos que se foram instalando nas sociedades, particularmente as ocidentais, onde vivemos e trabalhamos. Neles se incluem o “medo” de falar, analisar profundamente e, necessariamente discutir, temas como a Europa e União Europeia, a NATO, a moeda única e a questão da dívida. Os “comunicadores oficiais” que ocupam uma comunicação social, dominada e subjugada aos interesses do capital financeiro e do neoliberalismo, têm-se encarregado de desenhar e projectar uma narrativa, materializada num poderoso e assustador processo de intimidação permanente e orientação deliberada para a institucionalização de um pensamento único, baseado na propaganda para o unanimismo, em questões centrais da actualidade política internacional. Quer uma, quer outra destas premissas, terão de ser levadas em conta na compreensão, quer da anomia política, quer do estado de espírito que reina numa parte da sociedade e impede muitas vezes as necessárias tomadas de posição assertivas. Um certo desencanto com a Democracia tem crescido de forma expressiva, contribuindo, ainda que de forma pouco consciente, para dar à extrema-direita uma importante representação parlamentar.

 

Importa hoje ter consciência da necessidade de as esquerdas abandonarem o discurso da resistência responsável e passarem à ofensiva, apresentando um programa político global, alternativo ao sistema neoliberal. Os cidadãos votantes precisam de uma alternativa à esquerda, com uma nova linguagem e um novo programa, sustentados num enraizamento em classes, sectores e territórios desfavorecidos e capaz de induzir apoios em outros sectores sociais, sensíveis à justiça social e ambiental. Não será porventura despiciendo dizer que será necessário também promover um nível de insubmissão crescente, introduzindo elementos de subversão no sistema, encontrando nos desequilíbrios provocados, a fonte de inspiração para as lutas sociais que se adivinham. 

 

Com Abril, o nosso País instituiu um modelo de Estado Social constituído por serviços públicos universais e gratuitos, segurança social financiada pela solidariedade entre gerações, direito do trabalho com forte protecção da parte mais frágil na relação laboral, propriedade pública de monopólios naturais e serviços de interesse geral, tributação progressiva, direito a uma habitação condigna e promoção do pleno emprego. Entretanto, após duas décadas de neoliberalismo, o modelo económico baseado em baixos salários permanece, o Estado Social degradou-se, a ideologia das privatizações foi aplicada com zelo, a desigualdade e a pobreza alcançaram níveis chocantes, o direito a uma habitação condigna tornou-se uma miragem, e a precariedade laboral instalou-se. A classe trabalhadora e uma pequena burguesia proprietária perderam a influência nas políticas nacionais, muito por responsabilidade de partidos que as diziam representar e que são hoje centros de interesse e de acolhimento de negócios e onde se promove a transferência crescente dos rendimentos de trabalho para o capital, levando à liquidação completa de direitos, liberdades e garantias. Uma das prioridades parece então ser a produção de um discurso que seja ouvido pelos cidadãos e que estes compreendam e aceitem como importante para a transformação social. A luta de classes não terminou e está na ordem do dia, na defesa dos direitos dos trabalhadores. As organizações e partidos políticos que se reclamam destes valores, não podem, nem devem contentar-se com a resistência. Antes pelo contrário, precisa-se uma atitude activa e não simplesmente reactiva. É necessária uma estratégia, de preferência conjunta, para o necessário caminho para uma sociedade mais justa, mais solidária, mais democrática, mais culta e mais desenvolvida. 

 

Este pode ser esse um espaço determinante para a FA25ABRIL. O Manifesto do Movimento assim o proclama, “...o País precisa de ...uma alternativa credível ao rotativismo neoliberal que devolva a esperança aos portugueses.” 

Este aniversário dos 49 anos de Abril 74 convoca-nos para uma mudança, por tudo o que de positivo significa para o País, um sinal evidente da necessidade de uma ampla transformação. 

 


 49 ANOS DEPOIS - 1. O QUE RESTA DE ABRIL?

20 Abril 2023


 

Quase nos cinquenta, o calendário assim o determina, Abril continua a ser um marco de alegria pela queda do fascismo e de esperança por dias melhores. Esta poderá ser a forma mais simples de colocar a questão do legado de Abril de 1974, tantos anos passados, tantos avanços e recuos na luta de quem não tem mais que a sua força de trabalho para vender no mercado, de quem, no dia a dia, não consegue descobrir o que se passou, entretanto, para não ver melhorada a sua condição. Mesmo com todos os ganhos e contabilizando devidamente todas as perdas, a certeza apenas existe quando se afirma a necessidade de continuar a luta. Afinal, a mesma luta de sempre.

 

Se nos questionarmos o que resta de Abril, encontraremos decerto algo para dizer. Subsistirão algumas dúvidas, ou mesmo muitas. Problemas serão descritos e minuciosamente detalhados, em diversas áreas. Questões várias serão levantadas sobre modelos e estratégias, sobre formas de organização que melhor se adequam aos interesses dos cidadãos, sempre com especial atenção para aqueles que vivem do seu trabalho, pois são eles a riqueza maior das sociedades.  Análises dos diversos quadrantes político-partidários, quer dos partidos políticos, quer das associações, políticas e outras, quer ainda dessa força imensa, representada pelos órgãos de comunicação social, que hoje em dia, são pertença de grandes e por vezes gigantescas empresas e que determinam, de certa forma, a informação e a comunicação. Tudo irá convergir sempre num ponto essencial: o futuro do País, que não está isolado do que se passa, na Europa e no resto do mundo, tamanhas que são as implicações de qualquer decisão e determinadas que são as causas e consequências do funcionamento do modelo económico e financeiro, que tenta moldar o mundo com políticas determinadas e acções imediatas no que reporta ao comportamento esperado de governos e administrações. 

 

Estamos situados geograficamente na Europa e, do ponto de vista estratégico submetidos a uma união, que o é apenas para garantir a supremacia da Alemanha e a sujeição completa da periferia, em que dizem nos situamos, aos ditames de um directório não-eleito e às políticas do neoliberalismo, que retirou ao nosso País “quase todos os instrumentos relevantes de política económica – comercial, monetária, cambial, regulatória, de crédito, industrial...”, no entender do professor João Rodrigues, investigador e especialista em economia política e história do neoliberalismo. Nessa medida e estando dependente das regras determinadas por Bruxelas, o desenvolvimento do País está condicionado e deveras comprometido, uma vez que tem sido regra de todos os governos aceitar e cumprir, sem qualquer juízo crítico, as referidas regras e as suas especificidades, nomeadamente no que reporta ao défice e à dívida. 

 

Muito embora algumas tenham passado de moda, restam de Abril as palavras de ordem que sempre se ouvem nas manifestações, quer as de Abril e Maio, quer nas outras, onde os trabalhadores procuram, no mínimo, lembrar que algo falta fazer, cumprir ou remediar. “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais” ou “O Povo unido jamais será vencido”, porventura as mais emblemáticas, parecem ainda ser um factor de mobilização e participação, na rua, na fábrica, ou até, hoje em dia, nas redes sociais. Outras, com menos repercussão, não deixaram provavelmente a marca que mereciam, como, por exemplo, “Sem Cultura não há Liberdade”. E outras ainda, que desapareceram, por “morte natural”, como “A terra a quem a trabalha”, ou “Avante com a Reforma Agrária”. Todavia encontramos, quarenta anos depois, as que mostram a condição de quem passa dificuldades e continua a não ter escapatória que não seja a de as afirmar e gritar bem alto, para mostrar protesto e repúdio, como, “Casas sim, despejos não”, “Trabalho digno sim, precariedade não”, ou “Não ao Orçamento da Exploração e do Empobrecimento”. E resta finalmente aquela divisa, feita poema na boca do Sérgio, que parece constituir ainda um mote comum, talvez por resumir quase tudo em 6 versos, “A paz, o pão//habitação// saúde, educação//Só há liberdade a sério quando houver//Liberdade de mudar e decidir//quando pertencer ao povo o que o povo produzir”.

 

Há quem sustente, sobretudo quando se fala do que se conseguiu, que estamos muito melhor que antes do 25 de Abril. Sim, estamos melhor, porque fizemos de um golpe de estado, uma Revolução. Todavia, hoje são outras as exigências, o regime democrático assim o impôs. Nas novas sociedades do novo século impõe-se a exigência que resulta, por exemplo, do aumento da esperança de vida, com a resposta devida a uma melhor qualidade de fruição do lazer e da cultura e não, como tem acontecido, à exigência de trabalhar mais, uma perversidade intolerável. O direito a uma habitação condigna e a um trabalho decente e bem remunerado, inseridos num estado social pleno, deveriam contemplar os direitos naturais relativos à saúde e ensino públicos e de qualidade. Assim não teriam de fazer sentido palavras de ordem como as que se gritam hoje nas ruas, por necessidade absoluta, como esta que soa como indigna nos tempos que correm: “O custo de vida aumenta e o povo não aguenta”.

 

Fazendo contas últimas, que sempre serão actualizadas, ao que resta de Abril, estaremos habilitados a afirmar o que será necessário fazer, quer para consolidar o que se alcançou, quer para exigir mais. Precisamos de mais. Na verdade, de muito mais. Mais SNS, mais Escola pública, mais e melhor justiça, mais e melhor habitação, mais e melhor trabalho, mais e melhores salários. Os cidadãos necessitam de mais tempo de lazer, de mais cultura de porta aberta. Urge erradicar do País um imaginário de inferioridade permanente, que parece condicionar a capacidade de participação dos cidadãos na vida pública e política do País e que significa um elevado défice democrático.

 

Há uma razão para citar hoje e agora, Jorge de Sena. Porque constitui um legado de enorme 

importância de, mesmo que seja apenas o da esperança. Após ter deixado Lisboa, em exílio para o Brasil, a 25 de Junho de 1959, aquando do falhanço de um levantamento popular contra a ditadura fascista, designado por “Golpe da Sé”, Sena escreve um poema épico, a Carta a meus Filhos (Os Fuzilamentos De Goya), onde imagina “Um mundo em que tudo seja permitido // conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer//o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.”

O grande escritor e poeta da língua portuguesa, mas que ao mundo pertencia, disse “Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade”, acabaria por morrer três anos depois da libertação. Fica aqui de Abril, a cor da Liberdade.

 


 A LINGUAGEM (IN)CONVENIENTE 

5 Abril 2023


 

Do que se vem sabendo, através de notícias recentes, a reescrita de livros e a proibição de outros constituem-se como fenómenos de ataque à cultura da palavra e fazem temer uma nova era que, apesar de contornos ainda pouco definidos, não será decerto de merecer nem confiança, nem sequer respeito, muito menos esperança. De inconveniente considerada, a linguagem contida e inerente a obras cujo valor nem sequer está em causa, passa, depois de “aperfeiçoada” pelos escribas modernos, a ser conveniente aos olhos de uma sociedade que precisa estar mais atenta a tentativas “revisionistas” e manifestamente indignas da modernidade.

Sabendo-se da tendência do politicamente correcto e das virtudes consignadas por posições desta natureza, bem como dos seus resultados práticos, na produção de um discurso cinzento e asséptico, nem nos espantamos com propostas deveras abstrusas, para adaptar a linguagem a um estilo de uma manifesta sanha censória, bem ao gosto das correntes ultra-conservadoras que pretendem um recuo civilizacional sem precedentes na era moderna. Há quem as enquadre hoje numa possível “guerra cultural” e as associe a outras manifestações de manipulação das consciências e à deturpação da realidade, coisas que se têm visto por aí, intensificadas, ou aparentemente justificadas por eventos recentes como a pandemia e a guerra. Será, como adianta António Guerreiro, num artigo de Março passado no jornal Público, uma tendência que se encontra na política e que, na sua opinião, consiste numa certa deturpação do debate político, transformando-o numa “construção recíproca de caricaturas” e afastando de vez o necessário debate ideológico substantivo.

 

Recorremos a um artigo de Rogério Casanova, no jornal Público, que cita e aproveita um ensaio do ensaísta e teólogo irlandês Clive S. Lewis, datado de 1944. Nele, o Autor destaca as afirmações, “Palavras originalmente descritivas tendem a tornar-se termos de louvor ou crítica. O vocabulário do elogio e do insulto é continuamente expandido à custa do vocabulário de definição. As palavras, no seu declínio, limitam-se a engrossar o vasto caudal de sinónimos para bom ou mau”, para concluir que “A crença na magia profiláctica de substituir umas palavras por outras é infantil, mas não é inocente. Reconhece uma propriedade universal da linguagem”. Nesse artigo, de Fevereiro 2023, a que chamou “Charlie e a fábrica de conteúdos”, o Autor refere uma notícia do Daily Telegraph, em que se diz que “...as alterações foram feitas por uma organização chamada Mentes Inclusivas, que oferece uma gama de “serviços editoriais” e se autodefine como “um colectivo apaixonado pela inclusividade e acessibilidade na literatura infantil”. E refere ainda, com uma boa dose de humor, “...acredito que sim, da mesma maneira que a EDP é um colectivo apaixonado pela electricidade, e qualquer firma de consultores é apaixonada pela consultoria: não por serem vocações, mas por serem fontes de rendimento de promissora longevidade.”

 

Os autores da “nova linguagem” consideram que se devem reescrever os livros antigos para a tornar mais inclusiva e menos violenta. Provavelmente são os mesmos que dia a dia se dedicam a inventar expressões idiotas, nomeadamente para profissões. Exemplos como “técnico interior de manutenção” para empregada de limpeza, ou “agente de ambiente em espaços verdes” para jardineiro, sendo que obviamente se poderia trocar o género, sabendo-se que existem empregados e jardineiras. Mas, na verdade, essa atitude ultrapassa a questão, aparentemente simplista, da linguagem, para se inscrever na patranha neoliberal que pretende “acabar” com os trabalhadores e substituí-los por “colaboradores”, uma espécie de fazedores de coisas para alimentar o sistema que os continua a oprimir e agora os tenta “corrigir” e até estupidificar. Trazer à liça o putativo idioma fictício do governo despótico imaginado por Orwell, no seu “1984”, pode parecer dar importância demasiada a uma possível “novilíngua”. Todavia, os factos estão aí. Em finais de 2021, o executivo de Emanuel Macron rotulava de "islamo-esquerdismo" um amplo sector da academia francesa, falou-se mesmo nessa altura em França, de uma autêntica caça às bruxas. 

Ao mesmo tempo, começam a surgir na sociedade ocidental sinais evidentes, que podem ser interpretados como de ignorância, de intolerância, ou mesmo de estupidez crónica. Vêm curiosa e sistematicamente dos EUA, um país que se arvora como sendo uma luz para o mundo e que mantém, no seu interior, as trevas mais negras do seu passado. Uma professora é demitida da sua escola por mostrar aos seus alunos a escultura "David", de Michelangelo. Se acrescentarmos que se tratava de uma aula sobre arte renascentista, estará eventualmente tudo dito, apenas aproveitando para tal lembrar que, no século XV do calendário juliano, a Igreja Católica Romana considerava a nudez obscena, ordenando que se cobrissem os órgãos genitais das estátuas com folhas de figueira de metal. 

Em linguagem provavelmente não-conveniente dir-se-ia que o pénis do David perturba as mentes dos americanos da Florida, aos quais se poderia recomendar a leitura de um poema do Carlos Drummond de Andrade, pelo menos dos primeiros versos “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça / de magnificar o meu membro, / Sem que eu esperasse, ficaste de joelho /em posição devota...”, um atrevimento sadio, apreciado certamente por cidadãos que prezam a sua arte e a sua cultura.

Aquando do “Regresso” ao seu “Admirável Mundo Novo”, o intelectual inglês Aldous Huxley, escreveu que “A sobrevivência da democracia depende da aptidão de grandes maiorias para fazerem escolhas de modo realista à luz de uma informação sólida”. E chamou a atenção, a esse propósito, para “...poderosas forças ocultas, presentes nas profundidades inconscientes de cada espírito humano”, características de ditaduras, que, na sua opinião, censuram ou deformam os factos e apelam, “...não para a razão, não para o interesse próprio esclarecido, mas para a paixão e para o preconceito...”. Sábias palavras, escritas em 1959 e que se transportam facilmente para este novo século, onde parece minguar o pensamento racional.

Fazendo parte da existência humana, a linguagem define e marca a comunicação que estabelecemos uns com os outros, num entorno que é um misto de reflexão filosófica, cultural e de cidadania. O antropólogo britânico Jack Goody afirmou, numa entrevista de 2004, ao historiador de Cambridge Peter Burke, que os livros influenciam a nossa fala e a forma de pensar e de agir. Para Goody a linguagem escrita é assumida como factor de cultura permanente.

A linguagem, mesmo a mais “inconveniente” é responsável pelas manifestações que conhecemos, em todas as vertentes do conhecimento humano. Se permitirmos que o conservadorismo, nas suas diversas facetas, domine a acção política e estabeleça limites, os aqui referidos ou outros, estaremos a abrir a porta aos censores e à sua prática perversa, que é a de uma pequena moral burguesa, ou, na sua forma sistematizada, uma verdadeira moral pequeno-burguesa.  


A REALIDADE VIRTUAL DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

13 Abril 2023


Questionamos demasiadas vezes a realidade, pensando sobretudo no desenvolvimento de situações do dia a dia e naquelas que não alcançamos, mas gostaríamos de entender, num universo povoado de sombras, difícil de perceber, mas onde vivemos e lutamos por uma vida melhor. De um modo natural, ou por vezes, de forma artificial, vamos conseguindo enquadrar ideias e conceitos, num esforço notável. A interrogação prende-se com a circunstância de nos serem apresentadas notícias sobre uma nova forma de inteligência, que não sendo assim muito nova, produz um encanto fatal ou o medo do que é diferente, que poderá também ser, tal como o encanto, fatal e sem retorno.

 

Falamos de inteligência artificial (IA). Uma tipologia de inteligência que parece adaptada a uma realidade que nos escapa. Aos hipotéticos receios que venha para dominar o mundo, poderíamos eventualmente adiantar que talvez isso seja possível em ambientes artificiais, que são criados para que nos possamos sentir dentro de um ambiente virtual, afinal numa realidade artificialmente construída para, por exemplo, um determinado jogo. Para tal são oferecidos ao ser humano dispositivos conhecidos, como óculos, auscultadores ou sensores de movimento, ou seja, próteses. A inteligência artificial pode bem ser incluída como uma prótese de tipo novo, o que aliás nem será hoje uma grande novidade. Na verdade, a IA agrupa tecnologias diversas que, aplicadas simultaneamente, permitem que um computador emule a inteligência humana, apreendendo sons e imagens, comportamentos e factos, ou seja, todas as formas de dados em geral, para que seja possível adaptar-se às situações apresentadas, bem como compreender e resolver problemas. No limite, com o andamento do processo, a máquina será capaz de aprender por si mesma.

 

Falamos também, por força da proximidade, da designada realidade virtual, uma acumulação de tecnologias que permitem transportar o utilizador para um ambiente simulado, consequentemente artificial, fazendo-o desligar do ambiente real. Estas tecnologias, que deram os primeiros passos no final dos anos 80 do século passado, são capazes de integrar informações e experiências digitais no que se pode considerar um contributo da ciência para proporcionar aos utilizadores novas ferramentas e novas capacidades interpretativas. 

 

Quando introduzimos todos os contributos científicos e tecnológicos na vida dos cidadãos deveremos ter o especial cuidado de considerar que todos eles devem estar ao serviço das pessoas, ao contrário do que na verdade se passa na maioria dos casos, em que os referidos interesses são subalternizados e destinados a alimentar negócios de ponta, um pouco por todo o lado. Ou ainda, a potencializar teses e conceitos pouco claros e demasiado enfatizados na questão da hipotética neutralidade da tecnologia. Sim, a tecnologia não é neutra, tão só o resultado de interesses conjugados, no interior de um sistema que não é favorável ao cidadão, nem ao trabalho, mas sim ao capital. E, nesse sistema, todo o objecto é criado para uma utilização concreta, que depende da decisão e do modelo e naturalmente, do decisor e do Estado.

 

Poderíamos citar casos concretos de avanços e melhorias no bem-estar das pessoas, que gozam, por assim dizer, as vantagens e privilégios das citadas tecnologias. No caso da medicina, são de referir, por exemplo, as aplicações que a IA vem desenvolvendo para devolver a mobilidade a quem foi vítima de acidentes graves, com próteses especiais. E ao contributo nos campos de diagnóstico, no melhoramento do controlo e da monitorização de pacientes crónicos. E ainda na gestão global da saúde, quer na facilitação do acto médico, quer no auxílio poderoso à farmacologia, por exemplo, no apoio aos investigadores e pesquisadores, para analisar sequências genéticas para encontrar vacinas ou outras soluções adequadas.

 

Todavia, há que ter em consideração as abordagens que tendem a actualizar a própria definição psicológica de inteligência. Quando a empresa britânica DeepMind diz ter criado uma tipologia de inteligência que "pensa" como os humanos, ou quando a sua rival norte-americana OpenAI afirma a intenção de promover e desenvolver uma “IA amigável”, ambas estão a entrar porventura num campo eventualmente minado, no qual a ética estará a dar um contributo mais que discutível. A importância daquelas empresas na chamada economia global está bem patente se acrescentarmos que ambas pertencem, ou estão associadas, a impérios conhecidos, a primeira à Google e a segunda, ainda que indirectamente, à Microsoft. 

Relendo uma notícia do final do ano 2022, do Jornal Expresso, encontramos uma interrogação acerca da hipótese de a IA estar a chegar à política e se tal seria “útil”. A referência era para o designado Partido Sintético, baseado num modelo de inteligência artificial, para concorrer às eleições, na Dinamarca. Na verdade, a experiência não correu muito bem. Ao que consta, os defensores da ideia pretendiam representar cerca de 20% da população que não tinha deputados no parlamento e partiam do princípio que a IA já teria absorvido um volume apreciável de informação humana e, dessa forma, estivesse capacitada para dar respostas aos problemas das pessoas. 

O que sobraria para dizer é que a atitude, porventura eivada de uma certa ingenuidade, teria sido pouco inteligente, não na sua forma artificial, antes sim, natural. 

 

Obrigatório será falar hoje, a propósito da temática, dos novos desenvolvimentos da IA, nomeadamente nos que são mais conhecidos, ou propositadamente, mais divulgados. A “moda” hoje chama-se ChatGPT, uma aplicação que dá respostas a questões colocadas, elabora teses e até arrisca fazer um poema. Em boa verdade, grande parte das respostas que se podem obter são tão óbvias e evidentes, que qualquer pessoa minimamente informada as poderia obter por outras fontes. A questão não passará, entretanto pela resposta em si mesma, mas pela importância que é dada à aplicação, que também se deve dizer não estará muito bem informada. Segundo nos relatam as jornalistas Daniela Espírito Santo e Inês Rocha, em artigo publicado a 17 de Fevereiro passado, no portal da Rádio Renascença, “...A confiar nele, acreditaríamos que Mário Machado foi jornalista, André Ventura é presidente da Assembleia da República e Rui Rio ainda é líder do PSD”. E, a importância deve ser devidamente relativizada e enquadrada nos sectores ou áreas de influência respectivos e não extravasar para generalizações menos próprias, como a que leva constantemente a considerar que a IA vem substituir o ser humano. Todavia, se tal vier a acontecer, que o seja em favor do cidadão, a quem o futuro destinaria assim, menos trabalho, menos tarefas duras ou rotineiras e mais tempo de lazer, direitos fundamentais, muitas vezes passados para segundo plano, quando não simplesmente esquecidos. 

 

A questão não estará propriamente na IA, mas no sistema que a suporta e a quem aparentemente ela possa responder. Várias questões poderão então ser elencadas a esse propósito. Uma delas será a que o ser humano não deve “contentar-se” com a “resposta única”, aquela que sugere (e sustenta) os sistemas que não supõem alternativa. Nessa linha, lembramos Nietzsche e a sua tese da denúncia da estupidez, devidamente quantificada e extremada, em termos de uma certa incapacidade de “sair” da perspectiva única. Uma outra tem a ver com o que parece ser a tentativa de transportar o ser humano para uma realidade diferente daquele em que ele efectivamente vive. E essa não tem seguramente a ver com as tecnologias propriamente ditas, nem com o seu valor intrínseco, mas sim com uma utilização inconsequente e, por vezes até, indevida dos algoritmos e da forma como são programados. 

Há uma passagem excelente no filme “O Grande Ditador”, onde Chaplin nos diz, “Mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que inteligência precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes a vida será de violência e tudo estará perdido”. 


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