A ESPIRAL DO SILÊNCIO 2 Novembro 2023 A imposição deliberada do silêncio serve uma estratégia perversa, uma espiral voluntariamente desenhada com o intuito de ocultar a história, mesmo que tal possa parecer uma impossibilidade. Não são quaisquer forças do mal, hipoteticamente ao serviço de teorias da conspiração, arquétipos de crenças sobre manipulações secretas, mas sim realidades bem vivas sobre acções deliberadas e intencionalmente apostadas numa narrativa unipolar para impor uma verdade, um pensamento, uma solução. Para tal, nada melhor que a “construção” de mais um muro, neste caso na Faixa de Gaza e que oculta uma chacina criminosa. O silêncio é, neste particular, uma posição, à qual se remete o “ocidente civilizado” perante a acção terrorista dos que apostam na passagem da ocupação violenta ao extermínio organizado.
Proponho-vos um recuo a 8 de Julho de 2022. Nesse dia passariam 50 anos do assassinato de Ghassan Kanafani, co-fundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina, pelos serviços secretos israelitas. E foi precisamente naquele dia que o médico palestiniano Yasser Jamil Fayad lhe rendeu um tributo muito especial, num texto particularmente sensível, parte de um livro que sairia a público uns meses depois, com o título “Ghassan Kanafani – anticolonialismo e alternativa socialista na Palestina”, publicado pela Editora Fedayin. Nele se evoca o Homem que foi, para além de activista da causa palestiniana, um destacado intelectual e escritor e que abraçaria o internacionalismo revolucionário, anti-colonialista e anti-imperialista, um dos que viu os seus compatriotas sofrer. Sofrimento que Yasser classificou como a horrenda e execrável expulsão forçada de mais da metade do povo palestiniano das suas terras e de como se reorganizou, em campos de refugiados e tendas, a resistência e a luta nas décadas que se seguiram. Yasser lembrou, a propósito, os crimes cometidos por Israel, particularmente entre Dezembro de 2008 e Janeiro de 2009, com a utilização de armas químicas (fósforo branco), que dizimaram as populações.
Um dos autores que teorizou o “cancelamento” foi o jornalista norte-americano Walter Lippmann. Em 1922, publicou uma obra, considerada fundamental para o estudo da comunicação social nos EUA, designada “Opinião Pública”, na qual formulou a tese de que os cidadãos não respondiam directamente aos factos do mundo real, mas que viviam, ou eram forçados a viver, num “pseudo-ambiente”, composto por imagens projectadas nas suas mentes e oriundas de uma comunicação social devidamente treinada e naturalmente subserviente ao poder do dinheiro. Muito embora, na segunda fase da sua vida, se tenha “convertido” ao mercado, à boa maneira americana, deixou-nos a interessante tese “the manufacture of consent”, em português, "fabricação de consentimento", que supõe um processo de construção das mentes. E foi aliás, com base naquela tese que os norte-americanos Noam Chomsky e Edward Samuel Herman, lançaram em 1998 a obra Manufacturing Consent – The Political Economy of the Mass Media, em que descrevam a comunicação social como um mero negócio, com base na propaganda.
Poder-se-ia perguntar a qualquer pessoa se alguma vez se sentiu intimidada por expressar a sua opinião, porque era simplesmente diferente da maioria. É uma situação típica dos tempos que correm, que tem como consequência directa uma espiral de silêncio e um cancelamento conveniente. Numa circunstância dessas, a pessoa, muito provavelmente, ou expressa livremente a sua posição, ou, pelo contrário, cala-se e entra numa espiral de silêncio, deixando de manifestar o seu pensamento com receio de ser rejeitado pelo seu grupo social.
Alguns estudos sobre a espiral do silêncio datam dos anos setenta do século passado e tiveram, na cientista política alemãElisabeth Noelle-Neumann e na sua obra “The Spiral of Silence: Public Opinion – Our Social Skin”, (em português, “A espiral do silêncio: Opinião Pública – a nossa Pele Social”), uma expressão significativa. Ao analisar o comportamento social, face aos meios de comunicação de massa, a Autora reforça a ideia de que as pessoas tendem a calar-se quando percebem que a sua opinião é minoritária ou contrária à opinião dominante na sociedade, com receio de serem criticadas ou mesmo ridicularizadas, quando não, inclusivamente isoladas.
Constata-se, com relativa naturalidade, que as sucessivas ofensivas militares judaicas contra a Faixa de Gaza e a Cisjordânia foram sempre protegidas por uma espiral de silêncio dos principais meios de comunicação mundiais controlados por aquilo que é o lobby judeu transnacional, um poder imenso, incarnado pelos detentores do capital e ao qual o “ocidente civilizado” se rende vergonhosamente.
E entretanto, os inocentes estão, uma vez mais, em silêncio.
Um outro silêncio foi escrito em livro por Thomas Harris (The Silence of the Lambs), publicado em 1988 e depois passado para a tela por Jonathan Demme, em 1991. Netanyahu não tem a classe de Hannibal Lecter, mas, tal como ele, é um monstro, com uma mente psicopata, com uma fixação especial em destruir palestinianos. Aqui, a espiral do silêncio é arquitectada no morticínio em massa. Os mortos não falam. Deixam apenas um silêncio enorme atrás de si.
A perda de legitimidade da análise é hoje uma constante. E só mesmo com um esforço significativo se consegue chegar ao patamar mínimo, que é a passagem do pensamento crítico à expressão falada ou escrita, de uma ideia, ou de um pensamento. Os argumentos que são utilizados na discussão política, não passam, na maior parte das vezes, de arrufos obliterados, de tão ténues na sua essência e de tão pobres na sua significância. É hoje vulgar, sobretudo na comunicação (dita) social encontrar, por um lado, um profundo desprezo pela racionalidade e, por outro lado, uma falta de ritmo que é normalmente associada a uma espécie de paragem na solução de continuidade que é congruente com o fluir das ondas e, consequentemente, se estende ao desenvolvimento do próprio pensamento criativo.
O Poder tem um ritmo que por vezes não é compatível com a situação política. Existe uma impossibilidade prática de separação dos ritmos que envolvem o investigador e o investigado, na sociedade urbana atual. Se atentarmos à agitação provocada pela demissão do Primeiro-Ministro em Portugal, identificamos de imediato um ritmo uniforme, que tem a ver com o imediatismo e o espectáculo da “crucificação” da pessoa que ocupa o cargo, ficando para trás outras variáveis, como por exemplo, as causas da demissão, ou um hipotético envolvimento com eventuais arguidos. O que parece importar é apenas quem lhe irá suceder, aparecendo os nomes habituais e mais alguns que entretanto são avançados pelos comentadores que pautam a agenda mediática e, consequentemente, a agenda política. Fora de qualquer análise está, como sempre, uma mudança de políticas, o necessário diálogo com os intervenientes para a resolução dos problemas nas mais diversas áreas, enfim, uma análise séria legitimada em pressupostos identificáveis. Não deixa de ser curioso constatar que a análise seja centrada em uma só pessoa, ao ponto de se questionar que lugar irá ocupar em Bruxelas, ou noutro qualquer centro de Poder, na dita “União”. Não deixa de ser curioso também o facto de ser o ritmo do Ministério Público, a pautar a agenda mediática.
O final do século XIX e o início do século XX marcaram o nascimento de uma corrente filosófica designada “Ritmanálise”. O responsável pela autoria, foi o matemático e físico português Lúcio Pinheiro dos Santos, um Homem dotado de uma forte personalidade de grande capacidade pessoal e ainda de uma imensa combatividade cívica e política. A ele se associaram os conhecidos filósofos franceses Gaston Bachelard e Henri Lefebvre, ampliando estudos e investigação sobre a matéria, que entretanto carece de algum aprofundamento na actualidade, de forma a constituir-se como uma possível ferramenta, na análise e na retórica discursiva. Lefebvre fez, a partir da década de 1930, importantes estudos a respeito da imaginação na literatura e na produção de imagens literárias, a partir dos conceitos de ritmanálise, assinalando que a mesma, busca integrar através da noção de ritmo, tanto o que é social quanto o que é natural, para reconstituir uma unidade entre ambos. E sublinha a importância das rupturas sociais, porque é afinal a transformação da sociedade que está em jogo e que implica uma nova relação entre o espaço e o tempo. O critério adoptado é o das representações e decisões políticas. Na verdade, para haver mudanças, é preciso que um grupo social ou uma classe, intervenham, imprimindo um ritmo numa época, seja através de reformas, seja pela força. Segundo a sua tese, a ritmanálise tem como princípio a ideia de que a matéria não está inerte, indiferente ao tempo ou tão pouco numa duração uniforme.
Um dos objectivos da ritmanálise é de tratar das diferenças, das rupturas dos ritmos do quotidiano. É necessário dar a devida atenção à descontinuidade, através da combinação entre instante e ritmo.